vicenzocs 31/10/2023
Quem conta seus males desponta
A coragem de abrir a caixinha das memórias da infância e compartilhá-las com o mundo só pode vir na forma de uma criança espoleta. "Anarquistas, graças a Deus" que, só pelo título, já merece receber o selo de "obrigatório de se ler", poderia substituir o nome de sua autora, sem prejuízo de sentido, para "a menina Zélia". Nesta obra, Zélia Gattai revisita a garota que ainda existe dentro dela, descendente de uma família italiana que reside em São Paulo. Conhecer sua história é, portanto, um convite irrecusável!
Eu sou suspeito para falar, tenho uma intensa inclinação para histórias que envolvem famílias. Romance de memórias é, por tabela, um prato cheio. Eu gosto muito de como toda a narrativa é conduzida pela ingenuidade e peraltice da Zélia criança, que narra os fatos que viveu, muitas vezes protagonista destes ou sem entender porque se sucederam aqueles acontecimentos, mas justamente por não ter nada que a inflija de contar essa história, tudo soa muito natural e corriqueiro, como a vida cotidiana é.
Eu consigo imaginar agora, na minha frente, todas as personagens da família Gattai e seus antepassados. Seu Ernesto, um homem cujas vitórias e derrotas profissionais andam de mãos dadas, é com certeza à frente do seu tempo no que se diz respeito ao automobilismo (mas não ao casamento das filhas); Dona Angelina é a mãe que sempre soube que seu lugar nunca seria na cozinha como muitos ainda haveriam de afirmar e sim com o nariz, e especialmente os olhos, metido nos livros e nos veículos culturais; Wanda, o padrão de filha que se espera; Vera, a irmã do meio, que, por vezes, faz jus à alcunha de tom blasé; Tito e Remo, braços direito e esquerdo de Ernesto; e Zélia, a caçula promissora. Há outros personagens muito especiais, como Maria Negra, José Soares e o nono.
Eu amo como a cidade de São Paulo também se metamorfoseia em uma personagem. É uma São Paulo com crise existencial, que não sabe o que é nem o que quer ser, que se encontra na meiuca do modernismo acelerado com o estilo provinciano de vida. É muito engraçado como o período pueril da vida de Zélia perpassa por ruas, avenidas e alamedas que, naquela época, eram dadas como incertas ou pouco frutíferas, mas que, hoje, integram as áreas mais badaladas da cidade, como a Av. Paulista e a Av. Rebouças.
Ademais, é uma São Paulo que busca entender o lugar dos imigrantes dentro de si. Uma das graças mil presentes no livro é a fascinação de Zélia por seus antepassados, por tudo que eles desbravaram para que sua família pudesse ter uma casa onde morar e o direito de ir e vir. Reconhecer a luta dos ascendentes é um caminho para entender o agora.
Outro ponto muito importante é como o simples ganha posição de destaque. Para ser honesto, acho que esse é o maior acerto da autora. Dizer que "o que realmente importa são as coisas simples e boas da vida" não é clichê aqui, mas comprovação de um fato. E, apesar de se tratar da história simples de uma família simples com uma narrativa simples, são as peculiaridades dos Gattai que tornam tudo mais interessante. O próprio codinome "anarquistas" deflagra um seio familiar distinto à sua época e que não tem medo de mostrar o que verdadeiramente é, vide o quadro na parede da sala, um baita retrato do apego idealista da família e que é quase um personagem na vida dos seus.
A naturalidade supracitada anteriormente pode ser evidenciada em outros trechos da obra, que narram acontecimentos históricos relevantes, como a morte e perseguição de líderes antifascistas e a Revolta Paulista de 1924. É bizarro pensar como não reconhecemos a importância das vicissitudes quando estamos passando por elas e que, talvez por vingança, depois elas fazem questão de serem marcos nas nossas vidas e de muita gente.
A receita para o sucesso de Anarquistas, graças a Deus é falar da vida como ela é - com seus morros e vales, com as pessoas que dela participam, com as desilusões e frustrações e com os traumas que carregamos desde a primeira geração da nossa família. Se chegamos até aqui, muito devemos aos nossos familiares, mas se sofremos até aqui, eles também têm culpa no cartório.
Ainda bem que Zélia não poupou papas na língua para abrir seu coração e contar sua infância. Zélia Gattai, graças a Deus!