Val 23/02/2023
Desonra, uma reflexão sobre o que nos honra na vida.
Apesar de sabermos, até vulgarmente, que cada ser é feliz à sua maneira, para o freguês regular de uma meretriz na Cidade do Cabo, “nenhum homem é feliz até morrer”, como na última fala do coro de Édipo. E assim, nesta atmosfera, temos o início do intrigante romance Desonra do consagrado escritor sul africano J. M. Coetzee, laureado com o Nobel de Literatura em 2003, e premiado na França, na Irlanda e em Israel; foi o primeiro autor agraciado duas vezes com o Man Booker Prize.
E a felicidade do professor protagonista, encontrada somente nos momentos de alcova com suas conquistas - ou com qualquer outra mulher, pois ele não tem limites - é suspensa quando, arrogante, é desmascarado pelo seu próprio círculo de trabalho.
O excêntrico protagonista sempre esteve cercado de mulheres desde a infância. É um mulherengo incontrolável e Coetzee, inspirado num poema do britânico Lord Byron, cria um enredo brilhante para este incontrolável namorador, um “espírito errante” como na composição byroniana.
Num momento de confronto entre a obra do poeta e esta do romancista, cria-se um ato de colisão do personagem de Byron com o de Coetzee, e é intenso e primoroso. Revela também aqui, sem dúvidas, a genialidade literária do autor. Como o Lúcifer do poeta, o protagonista de Coetzee não age por princípios, mas por impulsos.
E, mais uma vez, um literato traz à baila o degenerado jeito de ser da imprensa moderna: baseado num pretenso fato, traçar narrativas para demolirem-se reputações. Tudo para, irresponsavelmente, garantir audiências e visualizações e, portanto, verbas publicitárias para sobrevivência da corrosiva mídia. Segundo o texto, os jornalistas agem como “caçadores que encurralaram um animal estranho e não sabem como acabar com ele.”
Finalmente, depois de longa procrastinação, o protagonista inicia ensaios para escrever uma ópera sobre Byron na Itália. O que alcança, consciente ou não, são encenações de flashes de sua própria vida como se fossem as do poeta, mudando apenas os personagens e os lugares. E como sua vida, fica incompleta. Assim, como tudo em sua existência, deixa de viver a felicidade, mesmo antes de morrer, corroborando o pensamento de Sófocles.
O livro é uma lição literária e o texto conciso de Coetzee torna-se mais mordaz quando se embrenha nas relações branco-negros no pós-apartheid envolvendo a família do professor, em partes marcantes e decisivas do livro. A violência percorre toda a obra deixando suas marcas tóxicas nos principais relacionamentos e nos abusos, sejam de pessoas ou de animais.
Envolto em sua teimosia e arrogância, o protagonista caminha para a velhice percebendo-a verdadeiramente num confronto direto com sua vida, em uma encruzilhada que lhe ocorre quando tenta conviver com a filha. O que construiu de sólido? E esta é a grande reflexão que a obra nos leva a fazer sobre nossas próprias vidas. Principalmente aos que já suplantaram a chamada meia idade. Somos honrados? O que nos restou de tudo o que fizemos?
Valdemir Martins
20.02.2023
Obs: Mesmo não tendo a menor sombra de preconceito em seu texto, o livro teve uma forte repercussão na África do Sul, apenas por abordar a existência de conflitos ainda como ranço do apartheid, obrigando Coetzee a abandonar sua terra natal e se estabelecer em Adelaide, na Austrália.
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