Pandora 15/08/2023Hilda Hilst é aquela escritora que eu passei a vida ouvindo falar, vi entrevista na TV, li uma frase ali e outra acolá, mas nunca tinha lido. Para além da irreverência, que sempre foi sua marca registrada, Hilda era culta, inteligentíssima, visceral, pura sensibilidade saindo pelos poros. E extremamente reflexiva. “Penso, logo existo” se aplica demais a ela.
Filha do poeta e jornalista Apolonio de Almeida Prado Hilst, Hilda pouco conviveu com o pai, que foi internado muito jovem em razão da esquizofrenia; mas ela afirmava que era “a típica edipiana”, que procurou em todos os homens o seu pai e que sua obra foi fortemente inspirada nele. “Escrever é sentir meu pai dentro de mim, em meu coração, me ensinando a pensar com o coração como ele fazia, ou a ter emoções com lucidez.” [1]
Quando eu soube que ela e Lygia Fagundes Telles tinham sido melhores amigas por mais de 50 anos achei inusitado, mas hoje percebo o quanto tinham em comum, o quanto eram pensadoras, reflexivas e falavam da mulher, de vida, morte, medos, insanidade, conflitos existenciais, o sagrado e o profano. Praticavam a sororidade quando nem se usava essa palavra. Hilda disse sobre a amiga: “Quero demais morrer segurando a mão da Lygia, porque sei que ela vai entender tudo na hora H. Ela vai dizer: 'Hilda, fica calma e tal que é assim mesmo'. A gente tem uma amizade, sei lá, pode ser até de outras vidas, embora sejamos muito diferentes."
Se você sabe que eu sou desse jeito, por que você fica chocado em me ver desse jeito? (não me lembro de onde tirei esta frase, mas vai ficar aqui)
Hillé, a obscena senhora D - D de derrelição - é uma senhora que vive no vão da escada de sua casa, conversa com o amante morto, questiona a existência, dialoga com Deus, filosofa, experimenta a solidão e o envelhecimento, explora seu eu e seu corpo, vive as angústias e incertezas com uma intensidade tal que sai aos borbotões, num fluxo de consciência dos mais complexos. Às vezes ela aparece na janela ou na porta de casa, às vezes nua, às vezes com caras que assustam as criancinhas e mesmo quando ela se retrai, há os que vão bater à sua porta, porque ela incomoda mesmo que não esteja fazendo nada aos outros. Para os vizinhos ela é a louca, a desavergonhada, a porca, a sapa velha e sua presença sempre é motivo de fofoca.
Tenho que ressaltar que a Hilda era hilária! Há umas passagens nesta narrativa que me fizeram rir de doer a barriga. Não vou colocar aqui para que vocês tenham que ler o livro! Mas é uma narrativa que causa estranhamento, principalmente àqueles que estão acostumados com uma escrita padrão, autoexplicativa. Aqui é necessário ter paciência, avançar, voltar e reler, ler em voz alta, recorrer ao dicionário uma vez ou outra, pesquisar. E vale a pena! O livro é pequeno, a experiência não.
“Segundo o crítico literário Alcir Pécora, A obscena senhora D “representa um momento de perfeito equilíbrio de desempenho, no qual se cruzam todos os grandes temas e registros da prosa de ficção que Hilda Hilst vinha praticando desde o início dos anos 70“. Estão no livro, por exemplo, a mistura de corporeidade e abstração, do prosaico com o erudito, da especulação filosófica com a loucura, a união do mais degradado ao mais sublime.” [2]
“o que é Derrelição, Ehud?
vem, vamos procurar juntos, Derrelição Derrelição, aqui está: do latim, derelictione, Abandono, é isso, Desamparo, Abandono.
Por quê?
porque hoje li essa palavra e fiquei triste
triste? mesmo não sabendo o que queria dizer?” - pág. 21
Em 1990, aos 60 anos, Hilda dá inicio à fase obscena de sua literatura, publicando O caderno rosa de Lori Lamby com o intuito de vender mais e se popularizar, já que apesar dos 40 anos de um rico trabalho literário, Hilst não tinha grande reconhecimento, as edições de seus livros tinham baixa tiragem, não faziam sucesso.
Em Cadernos de Literatura, editado pelo Instituto Moreira Salles em 1998, diz Hilda sobre o leitor: “Na experiência com a pornografia eu achava que podia dar certo, porque ela é engraçada; achei que os leitores gostariam. Mas, segundo o Jaguar, eles odiaram minha pornografia. Foi o único momento em que esperei algo do leitor. É como eu já falei aqui: eu acho que fiz um trabalho deslumbrante, se entenderam ou não, se leram ou não, eu não tenho nada a ver com isso”.
Ela tinha toda a razão.
Notas:
[1] Fonte: Instituto Hilda Hilst.
[2] Fonte: Guia do Estudante.
Recomendo a leitura que Beatriz Azevedo fez de trechos do livro no vídeo cujo link está anexo, pois ajuda muito a entender as vozes narrativas.
site:
https://www.youtube.com/live/aNvOOfZQuTo?feature=share