carlosmanoelt 06/05/2024
?Um susto que adquiriu compreensão.?
?Derrelição Ehud me dizia, Derrelição - pela última vez Hillé - Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu??
Após a morte do marido Ehud, Hillé, que já morava no vão de sua escada há algum tempo, vive então sozinha carregando consigo sentimentos de derrelição. Nesse tempo, lidando com questões existenciais relacionadas ao tempo, vida e morte, sua vida que já não fazia muito sentido, para si mesma, deixa de fazer qualquer sentido. A personagem busca no divino, o tempo todo, respostas para os seus problemas. A busca constante por Deus, a fim de se entender e entender o externo a leva a ter o que os médicos definem como crises de histeria, pois os sentimentos de derrelição são aflorados em meio a diálogos com Deus e Ehud. Estes são uns dos personagens que mais se fazem presentes na suposta loucura de Hillé, sendo os principais ouvintes de seus incontáveis questionamentos.
E é sobre tudo isso que Hillé quer falar, que a narrativa se constrói. Uma personagem abandonada e desamparada, sozinha, no vão de uma escada conversando com entidades não mais pertencentes ao seu mundo. Hilda Hilst nos traz, de forma hermética, rompendo com normas gramaticais e eliminando marcadores de fala, o mundo insano da protagonista. As letras em minúsculo após os pontos de interrogação confirmam o não uso de uma gramática na norma culta, característica presente em narrativas cuja escrita se dá em meio a fluxos de consciência. Além da forma hermética de uma gramática não usual, há também no vocabulário, não só o de Hillé, mas, também dos demais personagens, muita obscenidade. Em muitos trechos do texto percebemos a sua presença tornando a leitura um incômodo para alguns leitores: ?[?] as pessoas precisam foder, ouviu Hillé? te amo, ouviu? antes de você escolher esse maldito vão da escada, nós fodíamos, não fodíamos Senhora D??
Mas engana-se aquele que relaciona a obscenidade, presente no título da obra, ao vocabulário e comportamento de Hillé, com seus momentos insanos, andando nua pela casa, ou mostrando as ?vergonhas? para a vizinhança, por exemplo. Hilda Hilst quis ir além, quis se referir à vida em sua totalidade, quando usou a palavra para qualificar Hillé. Uma vida que incomoda muitos, que incomoda a vizinhança em função do seu jeito de ser e viver, do seu jeito questionador, transgressor por não se permitir viver em contentamento com o que a vida lhe fez ser. A própria personagem justifica essa obscenidade ao responder sua própria pergunta: ?[?] e o que foi a vida? uma aventura obscena, de tão lúcida.? Hillé torna-se obscena para a sociedade. O título da obra deixa expresso em poucas palavras que Hillé por questionar tudo e todos, por ter um senso crítico exarcebado, tem um comportamento transgressor, incomum aos outros, que no cotidiano apenas aceitam a vida como ela é, sem problematizá-la. E por ser assim, ganha o desamparo, a derrelição, torna-se uma eterna incompreendida. Este comportamento relapso dos outros, essa maneira de aceitar as coisas impostas na sociedade sem questionar, oposto ao de Hillé, nos faz pensar na subjetividade alheia das nossas vivências, em se tratando de questões sociais e políticas, por exemplo. Afinal de contas, quem de fato é o louco? Hillé por seu caráter questionador ou a sociedade por vir a ser alienada aos próprios problemas, à própria vida?
Hilda Hilst denuncia em sua obra a hipocrisia social, colocando em evidência a instabilidade da condição humana, uma sociedade cada vez mais doente. Hillé torna a ser paciente do médico livre, perdida em meio aos escravos, procurando entender as feridas da alma, os porquês da vida que carrega, buscando a verdadeira salvação. Enquanto Hillé vive em sua exarcebada vida de questionamentos, de senso crítico, no diálogo dos homens livres, muitos vivem na exarcebada ignorância do pensar. E o querer ser compreendida, querer ter algum sentido para si é triste e incomoda (percebe o obsceno em viver a vida questionando?), causando até mesmo o abandono. Em meio a nossa realidade, pensar é questionar, é nadar contra a correnteza.