Mariana 21/06/2021Os delírios satânicos de um autor branco do século XXCerto, vamos por partes.
O início do livro me cativou. Eu sempre curti histórias policiais, gosto da estrutura delas e gosto de ficar tentando adivinhar. E nisso o autor tem muito mérito, ele conseguiu criar um mistério que a gente fica matutando e querendo descobrir mais. Eu gostei de ver o Angel se tornando outras pessoas também, assumindo outros papeis para investigar, às vezes parecia um filme mesmo.
E nesse início, eu estava muito envolvida com o mistério, ficava fazendo o jogo de adivinhar comigo mesma e nos primeiros capítulos, quando o Angel disse em algum momento que ele tinha lapsos de memória quando voltou da guerra e que o Favorite tinha voltado mal da guerra e feito cirurgia plástica, eu pensei: é isso, o Angel é o Favorite, bem ao estilo daquele filme “Ilha do Medo”, só preciso saber como chegamos até aqui.
Então esse início foi divertido para mim, eu estava curtindo.
Até que chegou em 46% do livro quando o Angel recebe a Epiphany no escritório dele e descreve “os mamilos de menina marcando debaixo do suéter” e isso me deixou com tanto ranço que eu mal consegui aproveitar direito o resto do livro. Me trouxe flashbacks de guerra de quando eu li Pilares da Terra. E a partir daí, a narrativa machista se destacava e por várias vezes eu fazia barulho de vômito em voz alta, minha única reação.
A coisa piorou quando a Epiphany disse que tinha 17 anos e o Angel não se afastou, ele só aceitou que ela parecia mais velha. Achei muito nojento. Mas o pior disso para mim é que eu ainda tinha a teoria de que ele era o Favorite, então ele estaria transando com a própria filha… porém, eu continuei a leitura e outra coisa me incomodou, a representação do satanismo na história.
O autor fala no posfácio que ele usou todos os elementos que ele quis para mostrar os rituais, que ele tomou a liberdade de não se ater à realidade e inventar tudo. Então, ele acabou misturando um pouco as coisas. Fiquei muito chateada com a associação que o autor faz entre astrologia, tarô e satanismo. Métodos de adivinhação agora são coisa do diabo? Me parece algo que um homem do século XX não entendia e resolveu se apropriar de um jeito errado.
Além disso, eu pesquei alguns pequenos racismos ao longo do livro que me deixaram incomodada. O Angel associa o vudu e as crenças adivinhas da América Central com o satanismo o tempo inteiro até que a Epiphany começa a explicar a diferença para ele. Porém, não sei, no fim das contas, com o encerramento que as coisas tiveram, se ele entendeu a diferença de verdade ou vai colocar todas as adivinhações e magias no mesmo saco, no do satanismo.
Também tem o fetichismo em cima da Epiphany, que é tanto racista quanto é machista. Uma menina negra de 17 anos é vista como um pedaço de carne o tempo inteiro, desde o primeiro momento em que aparece. E ela morre amarrada em uma cama com uma arma enfiada na vagina. Isso é muito grave, como se ela estivesse sendo punida. Assim como o outro homem negro da história, que morre asfixiado com os próprios órgãos sexuais.
Enquanto isso, a mulher branca, que realmente estava envolvida em um ritual satânico, e o homem branco, que ajudou o Favorite a fugir, são mortos de maneira mais branda, menos “vergonhosa”. Ela tendo o coração arrancado e ele, com um tiro no olho. Consegue distinguir?
Enfim, o último comentário que eu quero fazer é sobre algo que o autor diz no prefácio, sobre como “sem saber exatamente como, parece que eu criei um clássico original”. Confesso para vocês que achei isso muito pretensioso. Até porque o livro não é tão memorável assim para se tornar um clássico.
Sim, ele tem o elemento original de colocar Lúcifer (ou Louis Cypher, que aliás, é GENIAL como nome para o diabo e eu demorei a entender) contratando um detetive particular para ajudá-lo a encontrar uma alma que tinha sido vendida e não entregue… porém, na execução, a coisa se perde um pouco.
Inclusive, a revelação de que o Favorite estava no corpo do Angel esse tempo todo não funciona porque é muito confusa (e é esperada desde o início, não foi um plot twist).
Quando chega ao final do livro, a gente nem lembra da premissa genial e que chega a ser cômica. Imagina acompanhar a história de um detetive (que não era a alma procurada pelo Diabo) que procura uma alma para o satã? Legal, né? Mas não foi.
Por isso, acho que obras como O Bebê de Rosemary e A Profecia conseguiram se tornar mais memoráveis com o passar do tempo do que Coração Satânico. Essas duas, pelo menos, tem mais consistência e são melhores escritos.
Enfim, eu não gostei dessa leitura. O início dela é super empolgante e envolvente, mas várias coisas vão estragando a experiência e a gente chega no final com a impressão de que poderia ter sido melhor.
site:
http://marianabortoletti.com.br/blog