filipetv 21/07/2022
"Doze Contos Peregrinos" é uma ótima porta de entrada para a literatura de Gabriel García Márquez, pois, além de ser uma escrita já bem madura e objetiva, a dúzia de contos que compõe a coletânea passeia entre o Real Maravilhoso ("A Santa", "A Luz É Como Água") e uma prosa com mais verossimilhança externa.
Publicada em 1992, a obra reúne histórias que, para quem conhece a vida do autor, soam bastante autobiográficas, mesmo que ele atue apenas tangencialmente na narrativa. Outra característica dos contos é que a América Latina não é mais o espaço eminente, mas sim a Europa. Daí o "peregrinos" do título, não só pelo sentido mais comum, de viajante, mas também por outro significado, o de estrangeiro, acepção que influenciou a tradução do título em inglês "Strange Pilgrims".
Pessoalmente, o conto mais marcante foi "Só Vim Telefonar", que conta a história de uma mulher que é acidentalmente presa em um manicômio na Espanha de Franco. Já outro que me marcou bastante pela sua delicadeza melancólica e foi "Maria dos Prazeres".
Porém, a história mais significativa do livro é "O Rastro do Teu Sangue na Neve", que só pelo título já chama a atenção. Assim como em "Ninguém Escreve ao Coronel", García Márquez retoma aqui o relacionamento que teve com uma atriz espanhola chamada Tachia, que engravidou dele e acabou abortando, fato que culminou na ruptura do casal, fazendo com que ela fosse embora de Paris para Madri. No conto, a protagonista, Nena Daconte, vai de Madri a Paris com um corte no dedo que não para de sangrar e é internada no mesmo hospital em que Tachia recebeu os cuidados à época do aborto.
García Márquez costumava dizer que todos nós temos uma vida pública, uma privada e uma secreta. E embora sua relação com Tachia não seja necessariamente um segredo, as consequências emocionais que ela deixou nunca foram tratadas pelo autor de forma pública, portanto entendo esse conto como uma tentativa de esconjuro do trauma ou um pedido de remissão por não ter sido o companheiro que a namorada precisava na época.