spoiler visualizarDelirium Nerd 21/08/2018
Um manifesto de Fernanda Torres em prol a arte no Brasil
A cultura está sendo constantemente atacada. Desde a destruição de lugares históricos, como o Teatro Oficina, até a criminalização de obras de arte, a onda conservadora dos últimos anos tem tentado apagar o lado questionador e revolucionário da arte. A esse contexto soma-se ao momento delicado que o teatro brasileiro atravessa. Seus ícones estão morrendo, e ninguém parece se importar em preservar a memória deles.
A era do Teatro de Arena e do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) parece uma lenda. O barato é gourmetizar o teatro, com seus ingressos de 300 reais. É nesse contexto que o terceiro livro de Fernanda Torres, A glória e seu cortejo de horrores, chega como navalha rasgando a carne. O background privilegiado da autora, ou seja, os momentos na coxia do teatro, vendo seus pais, Fernanda Montenegro e Fernando Torres atuarem, é o que torna a história de seu protagonista, Mario Cardoso, tão verdadeira. Um background desses só poderia nos proporcionar uma reflexão sobre os rumos da cultura brasileira.
“A glória e seu cortejo de horrores” é uma frase que Fernanda Montenegro costumava dizer com frequência para ilustrar a dificuldade do ofício de ator. Depois dos aplausos, de ser ovacionado por uma plateia fiel, há sempre o medo de não repetir aquela atuação, aquele feito.
Segundo Fernanda Torres, em entrevista para a revista Trip, a profissão de ator pode ser facilmente comparada ao Mito de Sísifo. Você se esforça, faz com que a pedra role até lá embaixo e tudo volta à estaca zero. É como se você não aprendesse nada. É sempre a primeira vez.
O sentimento de querer se superar é o que move a trama de A glória e seu cortejo de horrores. No livro, somos apresentadas a Mário Cardoso, um ator que já teve dias melhores. Quando a história começa, ele está tentando voltar a ser um respeitado ator de teatro através de uma adaptação megalomaníaca de Rei Lear, de Shakespeare.
A história sobre o acaso de um artista não é exatamente algo novo nas artes. Por exemplo, Crepúsculo dos Deuses, filme de Billy Wilder, retratava a decadência da estrela do cinema mudo, Norma Desmond. A produção é de 1951, mas já se podia ver como a fama impactava a vida daqueles que viviam dela. Se Crepúsculo dos Deuses fez um retrato fiel da Hollywood dos anos 50, A glória e seu cortejo de horrores consegue nos inserir no desconhecido mundo do teatro e da televisão brasileira, quando não existiam mídias sociais para ditar as regras do jogo.
Uma das discussões mais interessantes levantadas por Fernanda Torres é sobre as inúmeras formas de cultura, seja a telenovela ou o teatro.
Mário começa no teatro experimental, mas acaba migrando para as novelas e vivendo o ápice da carreira na televisão, nos anos 70. O personagem acredita ter se vendido para a cultura de massa, como bem ilustra este trecho: “Que se dane o preconceito, a acusação de que a rede de comunicação colossal se concretizara para servir aos interesses do regime.”
Durante muito tempo, a novela foi considerada um produto de baixo teor intelectual, de fácil deglutição para a população. Quando Mário é contratado por uma grande emissora de televisão para ser o galã da nova novela do horário nobre, a televisão está vivendo seu momento de glória. Nos anos 70, a telinha quadrada explodiu, estimulada pelas políticas econômicas da ditadura civil-militar. Agora, diferentemente dos anos 50, ter uma televisão não era mais sinônimo de luxo. A telenovela teve de se transformar para acompanhar as mudanças na maneira como a televisão era encarada. Saem as tramas ambientadas fora do Brasil, como a Rainha Louca, de 1967, e entram as narrativas comprometidas em retratar a realidade social do país, como Escalada, de 1973.
Ao entrar para a televisão, Mário assiste à derrocada de seu grande sonho: fazer a revolução através do teatro. Ele acaba sendo mercantilizado pela arte, digamos assim, porque está mais comprometido em ganhar dinheiro do que com a qualidade do folhetim. Na juventude, o personagem fora para o sertão, a fim de conhecer as mazelas sociais e aplicá-las ao teatro. É a época do teatro experimental, da quebra da quarta parede. Porém, com o passar dos anos e a incerteza de viver de teatro e cinema, ele acaba migrando para a televisão.
Como quase tudo no capitalismo, a arte também foi vítima da mercantilização. Ao falar sobre a novela bíblica que Mário está estrelando, Fernanda Torres tece uma crítica bastante ácida aos folhetins caça-níquel, que não trazem nenhuma discussão à população. Ou ainda novelas, como Babilônia, que se propunham a discutir temas importantes, mas que foram duramente censuradas.
A crítica de Fernanda Torres não se dirige apenas à televisão. Também há muito espaço para questionar os rumos do teatro. Por que as pessoas não vão ao teatro? Já me peguei pensando nisso diversas vezes. Como espectadora, a resposta me parece um pouco óbvia: porque é caro. Ingressos que custam muitas vezes 180 reais não conseguem levar o público aos espetáculos. Mas sei que não é bem assim. Existem inúmeros espetáculos e festivais maravilhosos, como o Sesc Palco Giratório, mas ainda assim eles não conseguem ficar tanto tempo em cartaz e principalmente atingir o público mainstream. É como se um espetáculo, por não ter um ator famoso, não fosse digno de ser assistido.
Não poderia deixar de comentar sobre o fato de que o livro de Fernanda Torres chega em um momento crucial para as artes brasileiras: o ataque à cultura. De certa forma, a arte sempre sofreu tentativas de criminalização. O que mudou é que a onda conservadora pela qual passamos desde 2016, fez com que esse fato tomasse proporções absurdas. Assistimos estarrecidas protestos para censurar exposições sobre sexualidade no MASP, mesmo havendo uma faixa etária para a visitação. A mostra Queermuseu, em Porto Alegre, que se propunha a falar sobre orientação sexual também foi atacada. Ações como essas são perigosíssimas, porque visam podar o pensamento das pessoas. Por que não dar a oportunidade de elas visitarem a exposição e tirarem suas conclusões?
Desde então, outros ataques têm acontecido. No âmbito do teatro, a peça O evangelho segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu foi censurada em Jundiaí e Salvador por ter uma mulher trans como protagonista. Na visão do juiz, que decidiu pela censura, figuras religiosas não podem ser expostas ao ridículo. Nesse contexto, A glória e seu cortejo de horrores é um livro essencial a quem deseja refletir os rumos que a arte está tomando no Brasil. Através do passeio por uma memória televisiva e teatral, podemos perceber a riqueza de detalhes com que Fernanda Torres descreve o ambiente artístico dos anos 60 e 70. Percebemos o quanto somos ricos em cultura, mas muitas vezes não conseguimos enxergar isso.
O que mais me “pegou” durante a leitura foi o senso de urgência da memória. Explico: a urgência em preservar uma memória que está se esvaindo. Se não tivermos memória, como poderemos questionar o que está por aí? O Teatro de Arena questionava a ditadura militar, e é por isso que precisamos mais do que nunca falar dele. O TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) foi o berço da experiência moderna no teatro. E o que falar sobre Cacilda Becker e Bibi Ferreira? Onde estão essas mulheres? Por que não falamos sobre elas? Por admirar muito essa época, a sensação que tenho é de que, por mais que tentemos preservar essa memória, ela escorre pelos dedos feito água. O que fazer?
A leitura de trechos de A glória e seu cortejo de horrores no Teatro Oficina, alvo de uma disputa entre Sílvio Santos e o dramaturgo Zé Celso, foi muito simbólica nesse sentido. Os dois disputam o que fazer com o terreno vizinho ao teatro. Sílvio, por ser o dono, deseja construir torres residenciais; Zé Celso quer construir um parque com um teatro ao ar livre. São interesses completamente diferentes e que falam muito sobre a maneira de enxergar a arte no Brasil. De um lado, a bola de demolição do capitalismo põe abaixo qualquer tentativa de preservação da memória. De outro, a arte resiste, protesta e faz pensar. Infelizmente, a decisão de não construir as torres foi revertida pela Justiça e um dos espaços mais antigos do teatro está ameaçado. É o perigo que nos circunda. O que esperar de tudo isso, quando o próprio Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) apoia uma decisão dessas?
Devemos lutar pela arte no Brasil. É meio clichê, parece discurso de final de filme, mas os ataques estão por toda a parte. Vai além da censura. Demolir prédios, esvaziar a nossa memória. Não dá mais. A Glória e Seu Cortejo de Horrores é um grande manifesto em prol de todas essas artes; teatro, cinema e televisão; que nos definem enquanto pessoas e brasileiros.
Leia na íntegra:
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