spoiler visualizarPedro do Contra 19/01/2022
O protótipo de 1984, melhor que 1984
Kallocaína, claramente apoiada em ?Admirável Mundo Novo? de Huxley, ao mesmo tempo que se faz base de ?1984?, de Orwell, representa uma distopia um tanto quanto diferente, no entanto, mil vezes inteligente e profunda.
Boye não parece tão preocupada em descrever a organização política do Estado Mundial, pelo menos não em primeiro plano. O principal mérito da autora sueca é mostrar os efeitos do abafamento moral e social que há num Estado totalitário; como cada fração da vida do homem acaba enjaulado, ainda que externamente o país consiga manter certa aparência social. Boye, na realidade, escreve Kallocaína após abandonar o comunismo de sua juventude universitária; depois de conhecer a URSS com os próprios olhos Boye assume uma postura política liberal.
O universo da sua distopia traz características centrais do comunismo soviético ? ainda que não faça referência direta ?, atributos explicados profundamente, aliás, por outros autores como Alexander Soljenítsin e Orlando Figes. Algumas características descritas por Boye são: dominância total da vida comum dos indivíduos; ambiente constante de vigilância e delação; supressão da consciência individual através das forças coletivas e do medo; a criação de uma ?psicologia social de submissão?. ?Sabemos que o Estado é tudo, e o indivíduo é nada? (p. 131).
O que a sueca faz de diferente dos demais autores de distopia é destrinchar os caminhos internos da consciência que, aos poucos, desperta da ilusão asfixiante da ideologia igualitarista. O lento processo de revelação de uma realidade mais arejada e livre, e o entorpecimento com imaginações e arrependimentos que consomem psicologicamente aqueles que aceitaram passivamente como verdade suprema as diretrizes de uma ideologia, eis o principal tema da obra.
Com esta obra Boye se torna uma das mais competentes apologistas da maturidade de consciência, talvez uma das mais habilidosas defensora da sanidade política da literatura mundial. O Brasil demorou 80 anos para ter uma das obras mais elementares para o nosso imaginário político; parabéns a Carambaia por romper essa letargia.
Anote aí, Kallocaína é daqueles livros que todos devem ler antes dos 30.