Jow 23/08/2011Morrer é um direito de quem vive.“O homem é a criança enlouquecida diante da morte” Leneru
Único ser vivo a ter consciência de sua finitude, o homem tenta encontrar consolo - ou afastar o medo talvez - falando da morte e de sua inevitável chegada. Por ela ser uma constante na sua experiência da vida, antes de se tornar o fim para ele próprio, esse homem elabora teorias filosóficas e cria formas artísticas sobre o enigma do sentido de viver para morrer. A vida inclui a morte que o homem não deixará jamais de rejeitar, mesmo tendo consciência da impossibilidade de viver para sempre. Ao olharmos para a história das artes encontramos pinturas e obras literárias cuja temática é a morte, aparecendo freqüentemente como começou a ser representada a partir do século XII: Um esqueleto coberto por um manto monástico e uma foice na mão. Temos então, uma forma universal de abordar a face da morte. Mesmo assim, o homem do ocidente não está preparado para a morte, e o desejo de uma vida eterna na terra sempre está na pauta dos sonhos do ser humano. Mas, quais as reais conseqüências se um fato dessa magnitude realmente se realizasse?! Temos então o romance de José Saramago, “As Intermitências da morte” e uma explanação simplesmente fantástica para um fato que mudaria totalmente a face do mundo.
Como realidade invisível, porém implacável, ela é o centro dos dois núcleos que constituem o romance do autor português. Sua ausência desencadeia - em um espaço sem nome e num tempo não datado, mas que certamente se trata do nosso por uma série de indícios - uma catástrofe em termos romanescos, o que leva o leitor a pensar na real necessidade da morte para a renovação da vida. Mesclando situações absurdas, impossíveis, com outras que seriam realidades caso os homens não morressem, Saramago mostra um mundo ambíguo formado por milhões de pessoas que, eufóricas porque a morte desapareceu de seus horizontes, sentem-se paradoxalmente aliviadas quando ela volta a ser uma presença, independente da suas vontades e atos.
Seguindo-se a essa verdadeira reportagem, ainda que fantástica, onde a ironia reina pela voz do narrador, o romance desenvolve um segundo núcleo onde o leitor vê tanto a imagem tradicional da morte como a sua transfiguração numa bela mulher que decide verificar o que impede que a comunicação sobre uma morte próxima chegue a seu destino, um violoncelista. A partir do não-lugar em que vive, a figura mortal que comanda os destinos do mundo envia uma fatídica e temida correspondência sob a forma de uma carta lilás para os homens que sabem então estar com seus dias contados.
O romance de Saramago, neste segundo momento, é atravessado por uma outra espécie de ironia quando a mulher-morte se apaixona pela vida e decide adiar o fim daquele que estava marcado para morrer porque ela passa a amá-lo. Mais especificamente, conhece os prazeres do sexo e não quer abrir mão deles. A situação é irônica traduzindo uma postura de desmistificação da morte, algo como um enfrentamento para afastar o horror.
A ausência da morte em níveis reais constituiria uma tragédia, e é isso que vem para o romance. Necessária à perpetuação da vida, sua inexistência definitiva, aparente sonho da humanidade, mesmo daquela sua parte sofredora, traria o caos social. Num mundo onde a população aumenta a níveis assustadores enquanto o trabalho diminui de maneira mais assustadora ainda, a não-morte levantaria, de imediato, problemas como os que o romance de Saramago aborda de maneira irônica. Toda a indústria que necessariamente existe - e é preciso que exista - em função do final da vida entraria em colapso.
Seria impossível uma obra de Saramago não atacar a Igreja que “como não podia deixar de ser, saiu à arena do debate montada no cavalo de batalha do costume, isto é, os desígnios de deus são o que sempre foram, inescrutáveis, o que, em termos correntes e algo manchados de impiedade verbal, significa que não nos é permitido espreitar pela frincha da porta do céu para ver o que se passa lá dentro”. A ironia corrosiva contra uma Igreja que aparece desde sempre enredada aos negócios da terra - leia-se do estado -, muito mais que aos do céu, aparece na figura do cardeal sendo obrigado a admitir para o primeiro-ministro “que se se acabasse a morte não poderia haver ressurreição, então não teria sentido haver igreja” e a conclusão óbvia do narrador é “que toda a história santa termina num beco sem saída”.
A leitura do romance de Saramago no seu todo, constitui uma reflexão sobre o sentido da vida e da morte. Da morte como necessidade; da vida como o tempo a ser bem vivido e celebrado, o que certamente não é a realidade do mundo. Da morte, brota a vida, a sua renovação; ela habita ironicamente o mundo dos vivos. A ironia do fato de a morte se apaixonar pela vida é a representação da celebração. Mas “ninguém morreu” apenas naquele dia, onde termina a história