Krishnamurti 03/09/2019
Romance “Torto arado” vencedor do Prêmio Leya 2018 mostra um país imerso em conformismo e incapaz de transformar seu destino
O grupo editorial português LeYa, foi apresentado oficialmente em 7 de janeiro de 2008 como uma empresa holding, com o objetivo de se firmar como maior grupo editorial de toda a lusofonia. Em Portugal, o Grupo é líder na área dos livros de edições gerais e o número dois na área dos livros escolares. No mesmo ano de sua inauguração, foi instituído o Prémio LeYa, que visa premiar anualmente um romance inédito, escrito em português, com um montante de 100 000 euros e a publicação da obra, constituindo-se assim, atualmente, como o maior prêmio literário da língua portuguesa. O Prêmio LeYa de Romance para autores lusófonos foi concedido em 2018 ao escritor baiano Itamar Vieira Junior com “Torto arado”.
Essa obra do senhor Itamar Vieira Júnior constitui-se como uma espécie de microcosmo da formação e desenvolvimento de nosso país. Vejamos por quê. Sua bem urdida trama situa-se nas profundezas dos sertões baianos em um tempo que transcorre entre a libertação dos escravos (1888), até mais ou menos por volta dos anos 60/70 do século XX. Não há datações precisas no texto exceto alguns pequenos detalhes que nos permitem situá-la nesse período.
A ficção gira em torno da história da família de duas irmãs, Bibiana e Belonísia que vivem na Fazenda Água Negra localizada em algum ponto da confluência dos rios Santo Antônio e Utinga na Chapada Diamantina, interior da Bahia. As irmãs, que são filhas de humildes trabalhadores rurais, numa dessas brincadeiras tão comuns às crianças, resolvem bisbilhotar a mala da avó que é guardada embaixo de uma cama. E é então que essa brincadeira revela uma faca afiada oculta na mala e, o contato com a faca termina causando um grave acidente. O acidente resulta em que uma das irmãs tem parte da língua amputada. Está criado o conflito. Mas ninguém se iluda de que um enredo dessa natureza envolva casualidades simplistas. O romance é uma grande metáfora desse nosso Brasil onde estão envolvidos os elementos que nos fizeram chegar até aqui da forma como chegamos, a começar pelo que representa socialmente a existência de uma região como a Chapada Diamantina.
No capítulo 19 da segunda parte, o leitor encontrará maiores esclarecimentos acerca da formação social daquela localidade na qual a fazenda foi instalada. A notícias da descoberta de minas de diamantes na região, em fins do século XIX e inícios do XX, levou à região um contingente populacional de ex-escravos de todas as procedências, caboclos e até um consulado estrangeiro foi instalado nas cercanias. Uma verdadeira corrida desordenada se estabeleceu. Foi o faroeste brasileiro, com direito à peripécias do coronel Horácio De Matos (esse homem foi um verdadeiro rei dos sertões baianos) e etc. “Esta terra viveu em guerra de coronéis por muitos e muitos anos. Para trabalhar no garimpo vieram muitos homens escravos das vizinhanças da capital, dos engenhos que já não tinham mais a importância de antes, e das minas de ouro das Gerais”.(p.177/178).
Tudo que ficou dito no parágrafo acima nada tem de fictício. O senhor Itamar Vieira Junior logrou acertar em cheio numa época e num local de nossa história que traduzem perfeitamente o tom e o ritmo de como o Brasil se desenvolveu. E esses, foram ao sabor da improvisação dos interesses imediatistas, da exclusão social, do salve-se quem puder, da baderna geral, da falta de qualquer planejamento que culminou nessa guerra completa entre Deus e o Diabo na Terra do Sol que AINDA HOJE é o Brasil. O autor, publicou há exatos dois anos, um belo livro de contos que li e resenhei. Chama-se “A oração do carrasco”. Naquela obra estes reunidos sete contos, a maior parte deles tocando na questão da escravidão. Em 2017 escrevi na resenha daquele livro:
“Os estudos referentes às características da escravidão (sobretudo quanto às relações entre senhores e escravos) foram analisados até aqui sob duas óticas bastante distintas. De um lado Gilberto Freyre (com o seu trabalho de fôlego - Casa Grande & Senzala), ofereceu-nos o estereótipo do cativo submisso, conformado, acomodado ao sistema escravista. Concebeu a efígie do que, muitos anos depois, Eduardo Silva chamaria do escravo Pai João, ou seja, a imagem da acomodação por excelência. Freyre no conjunto de sua obra, retrata uma escravidão idílica, romântica, na qual os protagonistas foram os escravos que gozaram o cativeiro, acomodando-se a este da melhor forma que puderam. Outros historiadores, como Gorender, deram relevância ao escravo rebelde, aquele que viveria sob o signo da negação. Portanto, concedeu-nos a representação do escravo Zumbi, isto é, o cativo heroificado pela sede de liberdade e coragem de negar o sistema por completo. O escravismo, nesta interpretação, teria sido um sistema de extremo rigor que esmagaria toda e qualquer possibilidade de autonomia dos sujeitos históricos oprimidos, dentro do regime escravista. Estes não teriam a possibilidade de formular projetos, de constituir famílias, de vislumbrar a liberdade sem quebrar com os grilhões da sujeição.”
E o resultado do embate entre o “escravo Pai João” e a figura emblemática de “Zumbi”, a luta entre a ideia do “cativo submisso, conformado, acomodado ao sistema escravista” e os que têm “sede de liberdade e coragem de negar o sistema por completo”, acabou resultando em uma realidade concreta que se espalhou, guardadas as proporções e especificidades regionais, claro, pelo país inteiro. Querem ver como os poderosos procederam e fizeram a maioria do povo, viver sob a égide do discurso de “Se conformando com os desígnios de Deus”(p.69), que é o discurso eterno no Brasil?
Na fazenda Água Negra, os seres humanos que trabalhavam para a família Peixoto proprietária do feudo, vivia em taperas de barro a lidar eternamente com mosquitos e moscas. Gente que carrega as marcas do abandono: “crianças de barrigas grandes, corpo frágil e principalmente tristeza e medo”. Mas vamos às estratégias daqueles que mesmo com a abolição ainda eram “Os donos da terra conhecidos desde a lei de terras do Império, não havia o que contestar”: Trecho da página 41:
“O gerente queria trazer gente que ‘trabalhe muito’ e ‘que não tenha medo de trabalho’, nas palavras de meu pai, ‘para dar seu suor na plantação’. Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena para ter abóbora, feijão, quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os mais velhos. Seria gente de estima, conhecida, afilhados do fazendeiro. Dinheiro não tinha, mas tinha comida no prato. Poderia ficar naquelas paragens, sossegado, sem ser importunado, bastava obedecer às ordens que lhe eram dadas. Vi meu pai dizer para meu tio que no tempo de seus avós era pior, não podia ter roça, não havia casa, todos se amontoavam no mesmo espaço, no mesmo barracão.”
Numa coletividade como aquela, desenvolveu-se também, e não podemos deixar de referir, aquilo que entre os homens sempre entra no capítulo do imponderável – porque se assim não o fosse seria insuportável viver sob tais condições. Um culto religioso conhecido como Jarê. Religião de matriz africana, mais especificamente um candomblé de caboclo, que existe em cidades do Parque Nacional da Chapada Diamantina, notadamente em Iraquara, Lençóis, Mucugê e Palmeiras. Uma de suas principais particularidades é o grande sincretismo religioso, um amálgama das nações bantu e nagô, as quais se uniram o culto aos caboclos. Prática religiosa agraciada inclusive, no fim de 2013, com o prêmio Culturas Populares, do Ministério da Cultura, o jarê está ligado à história do lugar. Foi criado por escravos e libertos, vindos principalmente das cidades de Cachoeira e São Félix, e levadas àquela área de garimpo de diamantes. Muitos se fixaram nas cidades de Lençóis e Andaraí, onde deram início ao culto do chamado jarê de nagô – aquele que só cultuava as divindades africanas, os orixás. Mas a convivência com os descendentes de indígenas na região foi fazendo com que aos poucos suas entidades fossem sendo incluídas no jarê, dando surgimento à forma contemporânea dessa religião. Diferentemente do que ocorre no candomblé, liderado majoritariamente por mães de santo, no Jarê predominam pais de santo na iniciação de novos adeptos.
Assim, encontramos no romance, a figura de Zeca Chapéu Grande, (pai das duas meninas), que se constitui o esteio espiritual da comunidade. Mas não há como uma religião, ou entidade, modificar as circunstâncias. É questão exclusiva de nosso livre arbítrio. Essa e outras questões periféricas, constituem a outra grande metáfora do livro. Enquanto Belonísia, que ficou muda, em razão daquele acidente na infância, era muito adaptada a uma vida de semi-escravidão, sua irmã Bibiana toma consciência do estigma da servidão imposto à família, e decide lutar pelo direito à terra e pela emancipação dos trabalhadores rurais. Aí temos o simbolismo maior da obra. A divisão. Falta-nos um espírito coeso de união no sentido de mudar, de modificar positivamente as circunstâncias sociais em que nos acomodamos, por medo, ou por achar que, (e vejam que estreiteza de pensamento): “no tempo de seus avós era pior, não podia ter roça, não havia casa, todos se amontoavam no mesmo espaço, no mesmo barracão”. E que trabalhar sob quaisquer condições, ainda assim, é melhor do que ser escravo!
Muito bem, sigamos só mais um pouquinho com a trama. Um dos personagens do romance, Severo, depois que a Fazenda mudou de dono, porque a família Peixoto se acabou com o tempo, tentou se insurgir contra a situação que perdurava. Ele tentava convencer os habitantes da fazenda: “Que nossos antepassados migraram para as terras de Água Negra porque só restou aquela peregrinação permanente a muitos negros depois da abolição. Que havíamos trabalhado para os antigos fazendeiros sem nunca termos recebido nada, sem direito a uma casa decente, que não fosse de barro, e precisasse ser refeita a cada chuva. Que se não nos uníssemos, se não levantássemos nossa voz, em breve estaríamos sem ter onde morar. A cada movimento de Severo e dos irmãos contra as exigências impostas pelo proprietário, as tiranias surgiam com mais força. No começo o dono quis nos dividir, dizendo que aquele ‘bando de vagabundos’ queria a fazenda dele, comprada com o seu trabalho. Aquele sentimento de desamparo que o povo havia sentido com a morte de meu pai foi sendo substituído pela liderança de Severo, para alguns. Outros não viam com bons olhos o movimento e se opuseram abertamente a meu primo, divergindo, entrando no jogo do fazendeiro para minar nossas forças. Guiavam seus animais na calada da noite para destruir nossas roças na vazante. Derrubavam cercas, e meses de trabalho viraram pasto na boca do gado”. (p.197). E o resultado da liderança de Severo, foi que ele acabou morto a tiros sem que jamais se soubesse quem foram os assassinos...
O imenso armazém que os portugueses fundaram nos trópicos, e a que deram o nome de Brasil teve seus ciclos econômicos muito bem referidos no romance do senhor Itamar Vieira Júnior. Do ciclo da cana de açúcar já decadente, voamos amalucadamente para a exploração de diamantes, depois (já quase ao final do livro), aparece um novo dono das terras casado com uma mulher histérica que é crente (aqui a religião que se impõe não é mais a católica), e vamos nós no embrulho, no samba do crioulo doido. E o imbecil, resolve criar Porcos! Talvez porque o agro é Tech, o agro é top, o agro é tudo, e o povão (ia escrever aqui negrada, mas a essa altura ninguém é mais preto, ou branco, ou preto misturado com branco ou sei lá o quê) dessa Bruzundanga que se entulhe nos infernos que se transformaram as nossas capitais. Uma coisa assim tem a menor condição de dar certo? Nunquinha!
Poderíamos ser uma grande Nação? Poderíamos ter um país próspero com excelentes condições para os cidadãos? Claro que poderíamos. Mas como, se não temos a menor noção de como desenvolver o país, se uma boa parte de nós quer viver como os senhores reis de Portugal viveram no passado às custas do Brasil? Mesmo que à custa de muita dívida. Queremos gozar a vida enquanto há tempo, mesmo que para isso penhoremos o futuro dos nossos filhos e netos por décadas. Somos egoístas, interesseiros mamando nos subsídios governamentais que queremos eternizar e negociatas que queremos multiplicar. Somos um povo preocupado com nossos umbigos sem qualquer sentido de nação. Somos pobres de espírito. Para nossa desgraça.
E estamos muito empenhados em viver à sombra de facilidades, encostados ao Estado. Como, se a maior parte da população, a que ganha menos, sustenta o país, e a outra parte composta de privilegiados, o país sustenta? Esta degradação tão expressiva abriu lugar à indiferença. Para quê votar se os resultados nas urnas podem ser revertidos por meras trocas políticas tão comuns entre nós? Para quê votar se a política que se vem praticando no país só serve clientelas em vez de servir os cidadãos? Para quê votar se não há candidatos fortes e capazes de orientar mudanças em uma sociedade que se torna cada vez mais parasitária?
E não é para menos. São muitos anos de roubalheira profissional que começa num Estado que há décadas não é exemplo, porque rouba descaradamente aos olhos de todos, comete ilegalidades, mantém corruptos, irresponsáveis e mentirosos no poder e acaba nas empresas e particulares, que seguem o mesmo exemplo. Como diriam os nossos colonizadores portugueses: “Todos a fazerem-se à vida. Todos a safarem-se como podem”. As empresas por outro lado, completamente afogadas em impostos e mais impostos que não se sabe a quem servem. Um Estado ao sabor de eternas reformas disto e daquilo que não leva à parte alguma (e que, pelo amor de Deus não quebrem nossos privilégios!).
Sem uma mudança cultural profunda para adquirir valores fundamentais e redirecionar completamente nossos objetivos, jamais sairemos deste lodo em que o país mergulhou. E equivoca-se profundamente quem pensa que não temos um enorme passado a solucionar. Sem uma reeducação da sociedade que vai se tornando parasitária, e dividida também por isto, seremos eternamente um povo pobre de espírito, a viver num país eternamente miserável sem a capacidade de transformar seus destinos. É a mensagem final que nos fica de um livro como “Torto arado”.
Livro: “Torto Arado” – Romance de Itamar Vieira Junior – Editora Todavia - São Paulo - SP , 2019, 264 p.
ISBN 978-65-80309-31-3
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