Com suas rotinas unidimensionais, os burocratas oferecem material preciso quando a literatura tenta enxergar o que mantemos guardado no fundo de gavetas. Na abundante obra de Mario Benedetti (1920-2009), Martín Santomé, o protagonista de A Trégua, representa o apogeu do homem comum, órfão do sublime.
Neste romance de 1960 do escritor, poeta e ensaísta uruguaio, as anotações de um diário equivalem a um livro fiscal em que se registram as operações sentimentais de um funcionário de contabilidade, viúvo na meia-idade e às vésperas da aposentadoria.
A persistência da narração na primeira pessoa introduz o leitor numa experiência definida por misérias morais e anseios de liberdade e felicidade abortados por infortúnios. No centro dela, o desejo age como a maçã bíblica, irresistível e punitiva. O pessimismo intoxicante da prosa de Benedetti não evita as iluminações poéticas. Tanto pior, pois logo se descobre que cada instante de elevação faz doer mais as quedas.
Literatura Estrangeira / Romance / Ficção