Lucas1429 18/07/2022
Parasita intelectual
Monteiro Lobato configura patente na prosa pré-modernista, quando articula seus textos em prol do intelecto pessoal afoito ao ambiente ruralista do início do século XX. Datado da década de 10, colabora com os principais jornais de São Paulo para a impressão e divulgação de seus artigos e contos que culminariam em 1918 neste celebrado “Urupês”. Merece a alcunha célebre, pois, indaga os estertores do viés socioeconômico que assolava o país à época (a relação ao Brasil de hoje não é mera coincidência), denunciando os fatores principais para a derrocada das minorias observadas: a política governamental e estatal, a burguesia.
Nesse período é presença dominante o coronelismo, que impingia os votos de cabresto à população rural vulnerável, beneficiando a liderança de imponentes coronéis das regiões respectivas. Essa obrigatoriedade foi mal vista pelo escritor que, herdeiro de uma fazenda no Vale do Paraíba, desmonta os aforismos de abstenção e caneta suas impressões argutas. Para isso, usa figuras recorrentes do período das proximidades como modelo às historietas.
Dos 13 contos, mais 1 artigo, embarca a pena de Lobato aos excessos da morbidez, às denúncias políticas, aos esfarelo ecológico, e ainda sobram linhas para o desvelo racista, já de conhecimento público. De lado, por ora, do cunho preconceituoso, suas narrativas curtas são bem escritas, magnificamente, e cativantes no intuito honorável dos temas. Em “Os faroleiros”, tem-se um espaçamento que dá lugar aos temas de Lovecraft, em proximidade ao conto “Erich Zann” e ao “O farol”, filme de Robert Eggers, quando emula um depoimento macabro de dois trabalhadores do mar; há uma pegada noir diferente do que será visto no restante do livro. “O Engraçado Arrependido” arremata a eterna discussão do comodismo.
No “A colcha de retalhos”, discute ele o ageísmo dos velhos componentes vivos do campo perante às gerações mais novas de uma família vinda de outra localidade tempos antes. “A vingança da peroba” marca o típico duelo entre duas casas que demarcam território, com um desfecho de justiça à natureza ofendida; quase uma carta de amor do autor ao ecossistema fruto de disputa terrena. “Um suplício moderno” é a deixa para a denúncia partidária da politicagem que assolava os pequenos espaços agrícolas, envolvendo parentelas importantes aos cargos suntuosos e acarretando em cargos excruciantes os vassalos, num contexto proletário cíclico, atemporal.
Em “Meu conto de Maupassant”, rápida menção a um caso numa paragem que beira ao fantástico irregular, tal qual o escritor francês referência. “Pollice verso” é notadamente um dos melhores, discorrendo sobre os excessos ambiciosos da classe média que atenta ao diploma médico para obtenção própria de louvores e dinheiro, em contraste com a filosofia da profissão humanizada. O “Bucólica” é quase lírico, narra em depoimento o destrato de uma mãe pela sua filha portadora de uma deficiência física aos olhos da cuidadora, uma mulher negra. Lobato quase exalta a personagem na sua candura empática, o que se desconfia, dado o histórico, mas não há outra tangente subjetiva, é como é.
No “O mata-pau", um desvairado causo que buli com a ávida cobiça de um filho casa com o simbólico título de uma árvore que invade outra, e a extermina. “Boca-torta”, concentra no vilão da história, uma espécie de Frankenstein negro que afeta à rotina de uma cidadezinha, descrevendo os atingidos como meros heróis românticos, vítimas do horroroso injustiçado; porém, é possível observar também em seu final a temática de Lobato à solidão humana. Em “O Comprador de Fazendas”, uma anedota divertida do barato que sai caro. “O Estigma” é o ciúme feminil posto em voga e a infelicidade conjugal num clímax brutal.
Às proximidades de encerramento, “Velha Praga” foi composto originalmente como um artigo expiatório sobre as queimadas e desmatamentos concentrados na região do Paraíba, culpabilizados por caboclos moradores das localidades. No mais famoso da coletânea, “Urupês”, Lobato desfecha todo o ressentimento pela comunidade cabocla incitando-os ao pouco caso pessoal, que incluem assepsia, cultura, alimentação, educação e tudo ademais que os envolva. Anos depois reconheceria que a ciência era a expressiva salvadora da pátria e estariam esses párias sendo mártires sociais do descaso do Estado.
A conclusão é que, misto de emoções, e passando por assuntos deveras importantes, sem fugir à discriminação em passagens mais raivosas, tencionadas, não críticas, o paralelo que traça com Jeca Tatu, de igual valia a um urupê, fungo parasita, pensa Lobato fugir ele próprio do quê parasitário; todos esses personagens são crias de modelos exemplares do espaço temporal que quis projetar, em que ele surge como um intelectual aproveitador das suas musas inspiradoras. Talentoso e intolerante, que encruzilhada.