spoiler visualizarIsa Beneti 23/07/2020
Retrato de uma infância pura e de um amadurecimento duro
Queria entender como um livro de tão poucas páginas conseguiu me fazer chorar TANTO... Porque, Guimarães Rosa?? Porque fazes isso comigo??
Não é a primeira vez que a morte de um personagem de Guimarães quebra o meu coração (o final de "Grande Sertão: veredas" também foi um rio de lágrimas), mas dessa vez as emoções que senti foram ainda mais intensas, pois é IMPOSSÍVEL não se reconhecer e se "projetar" nas personagens infantis nesse livro.
Afinal, a narração em terceira pessoa, realizada pela perspectiva do menino Miguilim (apelido para Miguel) constrói uma das melhores e mais puras representações da infância de toda a literatura. Consequentemente, mesmo que o leitor tenha crescido em circunstâncias bem diferentes das do protagonista (como é o meu caso, que cresci numa cidade de SP, e não na cidade de Mutúm no sertão de MG), o livro consegue retratar as personagens infantis de uma maneira tão universal que a gente acaba se lembrando da nossa própria infância. E é justamente por causa disso que os acontecimentos na vida de Miguilim foram tão impactantes para mim, sobretudo a morte de seu irmãozinho Dito.
Esse episódio é o mais marcante de todo o enredo (que é constituído por várias historietas da vida do menino Miguilim). Apartir dele, percebe-se que a narrativa ganha um "tom" menos infantilizado, como se esse acidente, junto com outras tragédias que ocorreram posteriormente (como o suicídio do Pai), houvesse obrigado o protagonista não apenas a amadurecer (amadurecimento marcado, por exemplo, pela quebra dos brinquedos de Miguilim) mas a se tornar um indivíduo triste, rancoroso e introvertido. Isso me fez refletir muito sobre a influência dos acontecimentos e tragédias da nossa infância, dos quais nós não tivemos culpa nenhuma, na nossa personalidade quando adultos. Muitas personagens julgaram Migulim por ser "antipático" sem nem mesmo saber o que o garoto já tinha sofrido.
Entre essas personagens está o terrível Pai, por quem o protagonista desenvolve um grande ódio devido à sua agressividade não apenas com os filhos, mas com a Mãe. A Mãe era uma personagem dúbia na visão de Miguilim, pois era amorosa, mas não o defendia do Pai. Essa dubiedade (amar ou odiar, certo ou errado) é um dos principais temas dos incríveis diálogos entre Dito e Miguilim, que dormiam na mesma cama e conversavam muito sobre questões éticas e morais (obviamente que de um modo infantil, mesmo que Dito fosse muito sábio). Miguilim se vê diante vários dilemas morais durante a história, a exemplo do episódio em que seu tio Terêz pede para que ele entregue à sua mãe um bilhete em segredo (subentende-se que Mãe traía Pai com o Tio), e após meditar muito sobre isso, o menino resolve não o entregar.
Outras personagens também são muito relevantes na narrativa: os outros irmãos (Tomèzinho, Chica, Drelina), as outras crianças como o endiabrado Patorí e o pobre Grivo, outros parentes como a religiosa Vovó Izidra e as negras Mãitina e Maria Pretinha. Essas três últimas personagens, juntamente com o tempo e espaço da narrativa, me lembraram muito o diário "Minha Vida de Menina", que também tem como protagonista uma criança mineira pobre cuja história é marcada por muita religiosidade e muito racismo.
Além disso, vários outros episódios também são importantes para a formação de Miguilim: quando o Pai abandona sua cachorra preferida Pingo D'Ouro, da qual ele nunca mais esquece; quando o protagonista adoece, pensa que vai morrer, mas melhora com a visita do engraçado seo Aristeu, que desperta em Miguilim o amor por contar histórias e pela imaginação (que começa a ser um refúgio para o menino).
Todas essas historietas compõem um enredo incrível, cujo desfecho é emocionante (Miguilim vai embora de Mutúm com um doutor que lhe empresta óculos para que o menino, que era míope, pudesse enxergar sua cidade e sua família melhor), escrito numa linguagem que consegue transmitir ao leitor a pureza e a ingenuidade da infância. E, mesmo com esse tom infantil, a narrativa consegue abordar temas universais e éticos muito profundos, e suas personagens infantis nos levam a refletir sobre muitos assuntos "adultos".