João Vitor Gallo 20/02/2015
Dúvidas, escolhas e humanidade.
Não senti “medo”, como muitas pessoas acabam descrevendo sua experiência com esse livro. Acho que se alguém pedir para os leitores definirem o livro em apenas uma palavra, boa parte deles o definira exatamente usando essa ou uma outra muito similar. Outros, talvez, procurassem definir o livro escolhendo “dúvida”, algo que permeia toda essa história e faz mais sentido para mim e talvez me decidisse por ela, mas eu também, possivelmente, optasse pela palavra “escolha”, no decorrer do texto fica claro do motivo da minha inclinação por essas palavras para definir esse excelente livro de William Peter Blatty, cuja adaptação cinematográfica se tornou icônica.
O livro não me causou medo como disse, mas me deu aquela sensação de estranheza, de desconforto, em parte por conta de algumas descrições e passagens que causam certo asco, mas também muito por conta da angustia dos personagens, como a mãe que não sabe o que fazer com a filha ou mesmo o que está acontecendo com ela, do padre que tem crises de fé ou mesmo do empregado que guarda um segredo, todos eles tomados pela culpa. Além desses vale destacar o padre Merrin que “sente” o seu destino chegar – fica claro desde as primeiras páginas – e se prepara para sua últimabatalha de fé. E todos esses personagens de uma forma ou de outra, e em diferentes níveis, sentem a mesma coisa: solidão.
O livro para muitos é quase uma batalha entre fé e ceticismo, entre religião e ciência, o que até pode ser visto desse modo e não seria uma visão equivocada, mas o livro vai além disso. Para mim é a batalha, não do bem contra o mal, mas do homem contra ele mesmo, a batalha pela sua fé, por forças para seguir adiante, para tentar entender o desconhecido, a luta por tentar ajudar uma pessoa mesmo sem saber como, luta pela verdade, luta contra seus medos, contra suas dúvidas, luta pela força da certeza. A questão da ciência – que tudo pode ter uma explicação, algumas delas que deixariam o Padre Quevedo orgulhoso – é mais intensificada com uma afirmação dita no livro de que o demônio sempre vai fazer de tudo para provar que não está possuindo a pessoa, vai confundir, testar a fé e o psicológico de todos, misturar mentiras com verdades, e deixa o leitor a todo momento pensando se é de fato uma possessão ou uma sugestão. Interessante como a dúvida dos personagens se transporta também ao leitor.
Outra questão em que fiquei pensando após terminar o livro e acho que todos pelo menos um dia em suas vidas já pensaram nisso, era sobre a existência do mal. Qual é a sua finalidade? É um teste de fé? É uma prova de valor? O padre Merrin, a certa altura discute essa questão com o padre Karras: “Acredito que o objetivo é fazer com que nos desesperemos, que rejeitemos nossa humanidade, Damien: que vejamos a nós mesmos como bestas, maus e podres; deploráveis; horrorosos, indignos. E talvez aí esteja o cerne da questão: na indignidade. Porque eu acho que a crença em Deus não é uma questão de razão; acredito que é, no fundo, uma questão de amor: de aceitarmos a possibilidade de que Deus possa nos amar.”
Já vi muita gente que se pergunta da causa de Deus permitir a existência do diabo. A história bíblica em torno dele é rodeada pelo tema escolha, e é só através da escolha é que podemos mostrar algum valor. Seria então esse o nascimento da virtude? Seria o diabo em si a própria prova da fé de Deus na humanidade? Lembra-me do conceito doyin e yang, onde há um pouco de bem no mal e um pouco de mal no bem, eles se mesclam às vezes e não são um conceito tão fixo e imutável como muitos pensam. O mal seria então a condição necessária para a existência do bem, um dependendo do outro para existir, e tendo como finalidade o livre-arbítrio para discernir e escolher entre o certo e errado. Deus estaria acima disso, o bem e mal residem na escolha, e o poder da escolha reside no próprio homem.
Enfim, além de ser um grande livro de suspense também é um livro que nos faz refletir bastante, tem uma grande carga filosófica que gera muitos questionamentos, é um desses livros que não terminam após você fechá-lo ao concluir a leitura, ele ainda continua reverberando, ecoando, vibrando, ainda vivo, gerando e alimentando pensamentos e indagações. Estejam avisados, no entanto, não se enganem ao pensar que é um livro puramente de terror, assim como é o filme, ou que o livro é sobre possessão, antes de tudo o livro é sobre humanidade.
site: https://focoderesistencia.wordpress.com/2015/05/13/duvidas-escolhas-e-humanidade-critica-do-livro-o-exorcista/