maria.e.sousa.7 19/08/2023
De névoas e sombras
De sombras e esperanças
A Sombra do Vento, por vezes, me remeteu a Tambores de São Luís, de Josué Montello. Não porque trate dos mesmos temas, mas no que tange a tornar a cidade uma personagem importante na narrativa. Aqui, Barcelona também é protagonista. E, junto com os narradores, a gente vai percorrendo suas ruas, seus monumentos, praças e prédios, de maneira que ficamos fascinados pela cidade, desejoso de conhecê-la tão intimamente quanto o autor a vai descrevendo.
Zafón narra uma história apaixonante, mas ao mesmo tempo, desoladora. Ficamos constantemente mordendo os dedos, antecipando qual é o próximo desencontro ou descompasso com que iremos nos deparar nas linhas e capítulos seguintes. Nesse sentido, se assemelha também a Cem Anos de Solidão, porque nos traz a atmosfera das coisas ou destinos inescapáveis. Situações fadadas a acontecer. Uma tônica de falta de esperança que permeia a história toda. Maldições esperando para se cumprir.
O tempo todo temos a sensação de uma Barcelona sempre envolta em névoa, brumas, fumaça. Tudo sempre muito turvo, sombrio, chuvoso, frio, úmido e malcheiroso ? de enregelar os ossos e a alma, literal e figurativamente. Zafón nos leva por cenários escuros e decadentes, onde a vida está se desintegrando. Uma sensação de encolhimento, velhice e decrepitude, carcomendo tudo. Mesmo nos lugares mais positivos, tem-se a sensação de algo muito antigo, ameaçado pela ferrugem do tempo, que a tudo corrói. Nesse sentido, ilustra o sentimento de profunda incerteza e terror que dominava a Espanha franquista no período em que a história se passa ? pré e pós-guerra civil e a ditadura posterior. A cidade (e o país) envoltos em sombras, brumas e neblinas, que impedem que se veja o futuro com clareza, naquele momento terrível. Não se pode confiar em ninguém. Não há esperança. Atmosfera asfixiante. Essa sensação que temos é, provavelmente, a sensação que contaminava a cidade e seus cidadãos naquele período nefasto: as coisas se desfazendo a olhos vistos; pessoas desaparecendo, a neblina, a sombra, a umidade, o medo; o terror tomando conta de tudo, em todas as esquinas; a vontade ou a necessidade de esconder-se daquela atmosfera invisível e fantasmagórica, mas ao mesmo tempo, horrivelmente tangível e concreta. Sentimo-nos enregelados ao percorrer as ruas de Barcelona, tão lúgubre é a vida ali - sem futuro. A luz se faz presente no final, felizmente!
O romance também me dá a sensação de boneca russa (referência que aparece dentro do próprio livro): muitas histórias dentro da mesma história, com muitas ramificações e consequências amarradas ao começo ? de novo, a qualidade fatídica; ou a mesma história contada numerosas vezes, em momentos diversos, por narradores distintos, com perspectivas diferentes, mas que no fim, tecendo uma colcha de retalhos muito bem costurada, numa trama notavelmente bem estruturada. E, como se não bastasse, sobram referências e menções a outras obras e autores - é um livro sobre livros!
E é uma história de amadurecimento, um menino se tornando homem. Amadurecimento que se percebe na evolução de suas relações, nos interesses, nos valores, na percepção das próprias falhas e medos - e também da própria força. A descoberta do amor e daquilo que lhe é mais importante.
O final para mim foi surpreendente, porque eu esperava que fosse muito pior! A esperança e a luz voltam a iluminar Barcelona!
Primeira vez que leio Zafón. Definitivamente, recomendo!
Nota 5/5
Compilei algumas pérolas e preciosidades conforme a narrativa se desenvolvia. Aqui me Zafón lembrou de mais um autor: Guimarães Rosa, e seu tratado filosófico do Grande Sertão!
As citações estão na ordem em que aparecem no livro.
Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha as suas portas, quando um livro se perde no esquecimento, nós, guardiões, os que conhecemos este lugar, garantimos que ele venha para cá. Neste lugar, os livros dos quais já ninguém se lembra, os livros que se perderam no tempo, viverão para sempre, esperando chegar algum dia às mãos de um novo leitor, de um novo espírito ? Sampere para o filho Daniel
Um segredo vale o quanto valem aqueles dos quais temos de guardá-lo ? Daniel Sampere
Presentes são dados pelo prazer de quem presenteia, não pelo mérito de quem recebe ? Sampere Pai para o filho Daniel.
O melhor das mulheres é descobri-las. Como na primeira vez. Não sabemos o que é a vida até tirarmos a roupa de uma mulher pela primeira vez. Botão a botão, como se estivéssemos descascando uma batata bem quentinha, numa noite de inverno ? Fermín Romero de Torres, para Daniel.
O difícil não é simplesmente ganhar dinheiro, difícil é ganhá-lo fazendo algo a que valha a pena dedicar a vida - Fermín
Este mundo não vai acabar por causa da bomba atômica, como dizem os jornais, vai acabar, sim, de tanta risada, de tanta banalidade, por essa mania de se fazer piada com tudo, e além do mais, piadas ruins ? Fermín, para Daniel.
As pessoas cacarejam o tempo todo. O homem não vem do macaco, vem da galinha ? O administrador Molins para Daniel.
Já dizia o mestre, mostre um mulherengo e eu lhe mostro um homossexual disfarçado ? Fermín para Daniel.
Existem prisões piores do que as palavras ? Carax; Núria para Daniel.
As palavras com que envenenamos o coração de um filho, por mesquinharia ou por ignorância, ficam guardadas na memória e mais cedo ou mais tarde lhe queimam a alma ? Núria Monfort
Nós existimos enquanto alguém se lembra de nós - Julian Carax
Na hora que se pára para pensar se se gosta de alguém, já se deixou de gostar da pessoa para sempre ? Daniel para Bea, citando Carax
Um bom pai (...) Um homem que seja capaz de escutar, guiar e respeitar uma criatura, e de não afogar nela os próprios defeitos. Alguém de quem um filho não goste apenas por ser seu pai, mas que o admire pela pessoa que é. Alguém com quem ele queira se parecer ? Fermín para Daniel.
O modo mais eficaz de tornar os pobres inofensivos é ensiná-los a querer imitar os ricos. Esse é o veneno com que o capitalismo cega ? Fermín para Daniel.
Os livros são espelhos: neles só se vê o que possuímos dentro ? Julian para Jorge Aldaya.
Falar é para bobos; calar é para covardes; escutar é para sábios ? Gustavo Barceló para Daniel.
Quando todo mundo se empenha em pintar alguém como um monstro, das duas uma: ou ele era um Santo, ou as pessoas não estão bem-informadas - Gustavo Barceló.
A morte tem dessas coisas: desperta o sentimental que há em nós. Diante de um túmulo vemos apenas o bom, ou o que queremos ver ? Gustavo Barceló para Daniel
Os mortos nunca vão ao próprio enterro ? Isaac
É curioso como julgamos os demais e não percebemos o quão miserável é nosso desprezo, até eles nos faltarem, até eles serem tirados de nós ? Isaac para Daniel
Às vezes nós pensamos que as pessoas são como décimos de loteria: que estão aí para concretizar nossas absurdas ilusões ? Isaac para Daniel
Não existem segundas oportunidades, exceto para o remorso ? Núria Monfort
Enquanto trabalhamos, não olhamos a vida de frente ? Núria Monfort
Cada um faz aquilo pra que serve ? Miquel Moliner
Há decepções que honram a quem as inspira ? Miquel Moliner para Jorge Aldaya
As lembranças são piores do que as balas ? Médico do Sr. Fortuny
Deus nos dá a vida, mas o zelador do mundo é o demônio ? Sr. Fortuny
Nada alimenta o esquecimento como uma guerra. Todos nos calamos e as pessoas se esforçam para nos convencer de que o que vimos, o que fizemos, o que aprendemos sobre nós mesmos e sobre os demais, é uma ilusão, um pesadelo passageiro. As guerras não tem memória e ninguém se atreve a decifrá-la, até não restarem mais vozes para contar o que aconteceu, até que chega um momento em que não as reconhecemos mais e elas retornam com outra cara e outro nome. Para devorar o que restou ? Núria Monfort
Nada provoca mais medo do que um herói que sobrevive para contar, para contar o que todos os que caíram ao seu lado jamais poderão contar - Núria Monfort
Quanto mais vazio está, mais rápido o tempo passa. As vidas sem significado passam ao largo como trens que não param na estação - Núria Monfort
Os acasos são as cicatrizes do destino ? Julian Carax
Somos marionetes da nossa inconsciência ? Núria Monfort
As pessoas estão dispostas a acreditar em qualquer coisa antes de acreditar, na verdade ? Núria Monfort
Um relato é uma carta que o autor escreve a si mesmo para se contar coisas que, de outro modo, não poderia descobrir ? Julian Carax
O louco sabe que está louco? Ou loucos são os demais que se empenham em convencê-lo de sua falta de razão para proteger sua existência de quimeras? Núria Monfort
Mais cedo ou mais tarde todos nós somos putas - Fermín
E algumas que não me lembro quando aparecem ou a que personagem se referem:
Afinal de contas, que tipo de ciência é essa, capaz de colocar um homem na lua, mas incapaz de colocar um pedaço de pão na mesa de cada ser humano? Fermín
Muitas vezes o que conta não é o que se dá, mas o que se cede.
Nunca confie em ninguém, especialmente em relação às pessoas que você admira. Serão essas que irão desfechar os piores golpes.
Não é preciso se entender uma coisa para sentir. Quando a razão é capaz de entender o ocorrido, as feridas no coração já são profundas demais.
Toda oportunidade de negócio tem seu ponto de partida na incapacidade de uma outra pessoa para resolver um problema simples e inevitável.