Ludmilla Silva 10/01/2021"Não julgue o livro pela capa. Um livro não recusaria nos servir. Nem cuspiria nos nossos copos"Estava com vontade de ler este livro desde que vi a série da HBO. E gostei muito de ter a visto antes, pois acreditei que uma obra complementou a outra. Estava com muitas dúvidas quanto a série que foram, por fim, esclarecidas aqui, e muitas cenas do livro já existiam perfeitamente na minha cabeça por já terem sido adaptadas a televisão. E mesmo com as similaridades entre ambas as produções, ainda sinto que são obras completamente distintas entre si, até porque a série teve tempo de explorar e aprofundar mais detalhes do que o livro, então é bom ter a experiência de vivenciar às duas obras, as quais eu altamente recomendo.
Eu gostei bastante do livro. Um dos meus pontos favoritos é o que o livro é dividido em capítulos e cada capítulo parece ser um conto único na história, que, mais tarde, se entrelaçará a história final. E o mais legal desses capítulos é que cada um é contado pelo ponto de vista de um personagem diferente, o que possibilita o protagonismo de vários personagens distintos entre si. Foi muito gratificante para mim, estar na cabeça de vários personagens e entender melhor sua história e motivação.
Infelizmente, ainda hoje não é comum vermos livros de fantasia/ficção sendo protagonizados por pessoas negras, e isto felizmente já é uma realidade em ‘Território Lovecraft’. Eu gosto bastante de como o autor ressignificou o universo criado por H.P. Lovecraft, que era abertamente e claramente racista, e o colocou em um contexto racial, onde os protagonistas são de fato pessoas negras. O legal desse livro, que foi algo que ouvi enquanto via a série, mas que se aplica bastante aqui também, é o que o vilão do livro não seria de fato os monstros, e os feiticeiros, e sim o racismo enfrentado todos os dias pelos protagonistas. Eu me via mais tensa, nervosa e com medo, em situações onde os protagonistas enfrentavam situações de racismo do que quando eles vivenciavam situações sobrenaturais, com monstros, fantasmas e assombrações.
Sei que o autor, Matt Ruff, é um homem branco, mas mesmo assim sinto que ele conseguiu descrever muito bem a realidade das pessoas negras nos anos 60, é bem provável que ele tenha pesquisado e conversado com pessoas negras para desenvolver seus personagens. A história se passa em um contexto onde os EUA ainda eram segregados, onde existiam as duras e desumanas Leis Jim Crow, então é comum ver os protagonistas sendo humilhados e tratados como nada. Sinto que o autor fez isso de forma muito espetacular, pois a cada situação de humilhação a minha revolta crescia. E o pior de todo é ver semelhanças dos EUA de 1950/1960 com os EUA – e obviamente com o mundo – de 2020/2021 (é sempre bom lembrar da importância do “Black Lives Matter”).
Eu acredito que o autor conseguiu mesclar muito bem a fantasia e a ficção, isto é, dos monstros, da confraria, da magia, das assombrações com o contexto racial da época. Sinto que mesmo esse contexto sendo muito importante para a história, ela ainda não é o foco principal, o foco principal é a ficção e isso me agradou bastante, pois trouxe luz a um assunto de extrema importância. É muito interessante também nós percebermos a forma como cada protagonista negro lida com a situação. E não é só porque eles são negros que eles vivenciaram a mesma realidade.
Tem-se o Atticus, que é um jovem soldado negro, que lutou pelo seu país e mesmo assim não tem o mesmo respeito que os militares brancos. Atticus é negligenciado e esnobado até mesmo quando se descobre que ele é descendente de Titus Braithwhite e um dos mais importantes da Ordem. Temos o contraste perfeito entre Letitia e Ruby, onde mesmo elas sendo irmãs percebe-se que Ruby sofre bem mais que a irmã, sendo humilhada em seus trabalhos e implorando pelo mínimo de dignidade. É triste pensar que Ruby recorreu à magia para ser uma mulher branca, pois era apenas assim que ela se sentia humana, e no controle da sua vida. Temos também Hippolyta, uma mulher negra extremamente inteligente, que sempre teve o sonho de cursar astronomia, mas não conseguiu devido às faltas de oportunidades e a humilhação que sofria. E até mesmo Horace e os amigos, que ainda eram muito novos para entender por completo o racismo, mas que já vivenciavam a experiência na pele desde cedo.
É muito agradável para mim, ter esse contraste entre os personagens e ver que eles têm personalidades únicas que agregam bastante a história. De todos os contos, acredito que o primeiro “Território Lovecraft” foi um dos meus favoritos, justamente por fazer essa introdução ao místico e a ficção, o “Hippolyta Perturba o Universo” também consegue fazer uma ligação muito interessante com a ficção e com os monstros. “Jekyll em Hyde Park” e a “A Casa Narrow” são capítulos que abordam mais a fundo o racismo e a forma como este afeta as pessoas envolvidas – gosto bastante da menção ao massacre de Tulsa em 1921. E os outros capítulos acabam por trazer perspectivas únicas ao livro como “A Casa Assombrada dos Sonhos” que fala sobre espíritos e assombração e o “Livro de Abdullah” de poderes e ordens místicas.
Daria para fazer uma resenha sobre cada capítulo, mas de modo geral eu gostei bastante de todos. Para mim a leitura fluiu muito rápido e eu sempre me via instigada e curiosa para saber mais. Gostei muito da ideia da confraria e da Ordem dos feiticeiros. Gosto de como eles lidam com a situação como se eles fossem “filósofos naturais” e de como é uma Ordem antiga, secreta e bastante poderosa. Eu não dei cinco estrelas para esse livro, justamente por causa disso, apesar de eu gostar bastante da Ordem e de tudo que ela traz para a história, principalmente no que tange a Caleb Braithwhite, eu sinto que muitos pontos ainda ficaram abertos, muitas dúvidas não foram esclarecidas. Sinto que o autor poderia ter explicado mais sobre essa Ordem, sobre a sua origem e a sua motivação, por exemplo, estes detalhes com certeza enriqueceriam muito a história. A motivação do Caleb, por exemplo, se manteve um pouco perdida ao longo dos capítulos para mim, nunca entendi muito bem para que ele queria o Atticus, e como o ritual o beneficiaria.
Ligado a isso, temos duas figuras importantes na história, o policial Lancaster e o Burke, que em alguns momentos aparecem como aliados de Caleb e depois como rivais. Eu senti falta de uma explicação mais concisa sobre a relação mútuo. No meu ponto de vista deveria ter mais um capítulo, explicando mais detalhadamente sobre a Ordem e a intenção de Caleb e sinto que o último capítulo também foi escrito de maneira corrida. Se o autor tivesse se aprofundado mais nele, algumas coisas ficariam mais claras e o livro, sem dúvidas, seria impecável. O próprio autor disse que pode ter uma sequência, uma continuação, e talvez ele explique melhor essas minhas dúvidas nos próximos, mas de qualquer forma sinto que deveria ter sido mais aprofundado aqui.
Estes detalhes não, foram algo que atrapalharam a minha experiência com o livro, foram coisas que eu percebi mais no final mesmo, quase como um gostinho de ‘quero mais’, e de modo geral eu gostei bastante da narrativa, e de seus capítulos e personagens únicos. Ter visto a série me deixou bem mais animada para a leitura, mas obviamente como é a adaptação do livro, o livro merece pontos por sua genialidade em vários aspectos. Eu recomendo muito a leitura e espero ansiosamente para uma possível continuação, pois ainda não me cansei deste universo.