Yueh.Fernandes 10/03/2023
Mais uma obra prima de Pullman, entretanto...
Essa vai ser a primeira vez que eu vou fazer uma crítica ao Philip Pullman, que pra quem não sabe, ocupa o primeiro lugar no meu top 3 de autores favoritos de todos os tempos.
Aqui em A Comunidade Secreta ele pecou, mas vou dar uma passada de pano aqui pra ele e dizer que, pelo menos nesse sentido, se ele errou, foi tentando acertar, porque o quê que pega: o livro é muito denso, ele é lotado de conteúdo e pequenos detalhes, pequenas miudezas, e eu acho que em momentos onde ele deveria ter se estendido, ele passou correndo, e momentos em que ele deveria ter passado correndo, ele arrastou demais.
Sem contar que tem, tipo, muita coisa acontecendo (muita coisa mesmo), então tem MUITA informação, e o modo como ele escolheu passar isso pra gente não foi dos melhores. Acho que ele poderia ter resolvido isso separando a história em capítulos no estilo "Point Of View", em vez de deixar as subtramas misturadas dentro de cada capítulo. Acaba que fica parecendo que o livro tá atirando pra muitos lados ao mesmo tempo e a gente acaba meio perdida na história. São muitos personagens fazendo coisas muito distintas, seguindo caminhos muito diferentes (e em alguns pontos, seus objetivos se entrecruzam, mas uma vez separados, pelo menos neste livro, eles acabam nunca se encontrando), e às vezes a gente tem três ou mais personagens dividindo o "spotlight" no mesmo capítulo e há sempre uma quebra crucial na narrativa entre uma trajetória e outra, aí às vezes ele recupera a trajetória daquele personagem X bem mais lá na frente e a gente precisa voltar umas páginas pra lembrar o que fulano tava fazendo, por onde ele andava, etc.
Outra coisa é que, apesar do livro chamar "A Comunidade Secreta", a própria só começa a ganhar destaque a partir da segunda metade do livro, antes disso a trama se desenrola totalmente em torno das artimanhas políticas do Magisterium, que os leitores do Philip Pullman já conhecem, e sabem como opera, e as medidas que a agência secreta Oakley Street (apresentada pra gente em La Belle Sauvage) toma para estar sempre à frente da instituição ou ombro-a-ombro com ela. Aqui no entanto, nesta história, desta vez, a gente tem um insight muito mais profundo sobre a instituição e seu funcionamento e como ela própria se organiza pra fazer a manutenção do poder. Além disso temos a questão da Lyra que agora é uma mulher adulta, acabou de entrar na casa dos 20 e tem aí suas questões internas, seus conflitos, sendo o principal deles o fato de que agora ela e Pantalaimon, seu daemon, simplesmente não conseguem mais se entender, não estão mais na mesma página, e a tensão crescente entre os dois é palpável e violenta e causa muita, muita angústia ver dois personagens que se amavam tanto, que eram unha e carne, se odiando dessa maneira e destruindo um ao outro. Ou se autodestruindo, né, já que Lyra e Pan juntos formam a mesma coisa, a mesma entidade, a mesma pessoa.
Outra coisa que eu não curti muito, mas aí já é um ponto de vista pessoal meu, outras pessoas podem achar isso perfeitamente OK, mas é algo que me causa um certo desconforto, foi ver o Malcom Polstead, um personagem que eu admirava desde o livro anterior, pela nobreza de espírito, pela força e pela personalidade aprazível, se apaixonar pela Lyra... ele carregou ela no colo quando ela era um bebê, eles tem 11 anos de diferença, ele chegou a dar aulas para ela na faculdade, e segundo o próprio, ele já demonstrava certo interesse nela desde aquela época, quando ela tinha em torno de 15, 16 anos.... achei isso meio forçado, desnecessário, sem sentido, meio que estragou a magia do personagem pra mim, porque não consigo entender o que um homem perfeitamente formado, com 30 anos nas costas, consegue ver de atraente ou interessante em uma menina que saiu da puberdade anteontem, isso é uma coisa que não entra na minha cabeça de jeito nenhum e que eu sempre vou condenar, Mas isso sou eu. Outra pessoa pode achar isso perfeitamente normal e, como uma das personagens fala depois pra ele: "vocês dois são adultos", e isso puxa outra observação que preciso fazer acerca do tópico: o que mais me incomodou nessa história toda foi ver que ele mesmo tem consciência de que isso é eticamente e moralmente errado, mas os outros personagens percebendo, o interesse dele na menina, não o repreendem em nenhum momento, agem com naturalidade ou mesmo endossam aquilo de maneira muito sutil. É meio perturbador, eu acho. Loucura total, não entendi MESMO esse lance.
Mas se for ignorar isso, o livro desce redondinho porque, apesar de ser uma leitura densa, é Pullman então ela é muito gostosa, chega a ser meio lúdica e bastante didática em várias passagens. A gente encontra ao longo da narrativa uma gama de discussões muito prolíficas sobre filosofia, política, religião e sexualidade até, coisas que a gente viu presentes nos três livros da primeira trilogia de uma maneira bem mais sutil, alegórica até eu diria, aqui ele é bem sucinto e vai direto ao ponto, sem os pudores de Fronteiras do Universo. O plano de fundo da trajetória de Lyra nesse livro alude claramente à crise do petróleo no Oriente Médio do nosso mundo, que é a responsável indireta pelas guerras e o extremismo religioso naquela região, aqui o petróleo é substituído pelo óleo de rosas e o Magisterium aliado a uma grande farmacêutica fazem o papel dos países imperalistas, que a gente já sabe quais são... neste cenário nós temos uma Lyra completamente desconectada da personagem que ela um dia foi: encontramos agora uma jovem dama que pretende maturidade mas não passa de uma pirralha petulante e arrogante que bebeu da fonte de dois pretensos filósofos do mundo dela que pregam uma ideologia aberrante acerca da natureza da realidade, o que acaba por distanciar ela do próprio daemon e de toda a magia intrínseca ao mundo dela. E o caminho que ela toma, de maneira inconsciente, guiada pelas forças do oculto que permeiam o universo, é o de recuperar, aos poucos, a verdadeira essência dela, tomando, é claro, muita porrada da vida. Nesse ponto eu me identifiquei bastante com a personagem, e até tomei a liberdade para interpretar como um aceno das forças ocultas presentes neste nosso mundo, direcionado a mim, do mesmo jeito que a comunidade secreta conversa numa voz muda, sem palavras, através de simbolos e alegorias, com Lyra e Malcolm ao longo da história.
Pra finalizar, acho que é um livro que super vale a pena se você der uma chance e tiver paciência pra esperar ele desenvolver, pra mim é um 10 sem sombra de dúvidas.
site: yueh.carrd.co