Leticia2513 25/10/2023
Passagens de O Livro de Líbero
Havia certa lógica também: diferentemente da Gazeta, dos amigos, da escola, enfim, das pessoas e dos lugares que amamos, os livros estão sempre à nossa espera para quando os quisermos, cães leais, pacientes mesmo diante dos mais longos abandonos.
Ele dizia que a esposa temia tirar os pés do chão e acabar descobrindo que podia voar. E pior: que isso era muito bom.
Uma ruga de tristeza brotou no seu rosto, daquelas que, tamanho o susto, surgem repentinamente e nunca mais desaparece da pele. susto de descobrir que o mundo era grande demais para ser abocanhado, que ele nunca conheceria tudo o que havia para conhecer, nem leria todos os livros que gostaria de ler. Talvez fosse por isso que mãe preferia se ater apenas às miudezas, àquilo que podia ver e pegar: uma serena admissão de derrota nessa disputa já perdida de antemão. O universo, em constante expansão, estaria sempre um passo à frente, inalcançável.
Viver era justamente isso: olhar uma coisa e perder tantas outras. Escolhas.
“Cada coisa tem o seu tempo, no virar, no viver de cada capítulo.”
E ele sempre começaria projetando uma foto da mãe, capturada à meia distância, sem que ela notasse. Uma imagem vertical, Norma de perfil, vestindo um avental surrado, sua medalhinha de Santa Lúcia no pescoço, descalça, os dedos dos pés fincados na terra, o rosto lambido por uma luz de pôr-do-sol. “Isso lá são modos de apresentar a própria mãe?”, perguntaria ela, horrorizada com seus cabelos desgrenhados, a roupa desajeitada. Mas aqueles dedos ásperos, de unhas sujas, cravados no chão, não havia metáfora melhor: isso era a fotografia para Líbero, uma ode à realidade.
Tudo isso foi há muito tempo, restam apenas os fantoches nas páginas do livro e as miragens que a mente insiste em lhe pregar. Como é fácil misturar os tempos. Mais do que fácil, tentador.
Por um instante achou que tinha um quê de assustado nos olhos dela, e talvez tivesse mesmo pois as coisas mais lindas do mundo também podem dar medo quando as vemos pela primeira vez.
Acho bonito esse meu ofício, como um carteiro distribuindo correspondências. Algumas trazem notícias ruins, é verdade, mas todas elas, enquanto lacradas em seus envelopes, guardam infinitas possibilidades, esperanças, histórias. Assim como esses livros.
- Posso ser um velejador e conhecer todos os mares?
- Pode ser o que você quiser.
- Mesmo que não esteja escrito no livro?
- Acho que você ainda não entendeu, garoto: é você quem escreve o livro. É só uma questão, digamos assim, de ter coragem para usar a caneta.
Não existem esses indícios, nem justificativas que expliquem tudo. A vida é uma sequência de aleatoriedades frágeis, pequenas sincronicidades que ocorreram, mas que poderiam muito bem não ter ocorrido.
Mas o livro da vida, que se reescreve a cada escolha de bifurcação, não deixava dúvida: não existiam respostas certas. Não havia como deixar seu futuro nas mãos de Deus, como acreditava Norma, ou nas mãos do destino, como preferia Massimo - Líbero era seu próprio Deus e seu próprio destino.
Eu era uma criança embasbacada com os mistérios do mundo, não acreditava piamente naquelas cartas e estrelas, mas tampouco as considerava mea falcatrua, pelo contrário, achava que somadas à Deus eram mais uma camada de sabedoria e proteção. Pra que escolher só um Deus se podíamos ter todos?
- Você também precisa ir longe, Líbero. Subir morros muito mais altos do que esse para conseguir de fato enxergar. Só assim você vai se perdoar, seja lá o que for que tanto te atormenta.
Falávamos pouco, não porque eu não tivesse perguntas a fazer ou novidades pra contar, mas porque Líbero parecia encontrar no silêncio uma forma de medicamento.
Assim como as casas que tínhamos pintado, a normalidade de Líbero residia apenas na fachada, por dentro ainda havia muito trabalho a ser feito, muitas rachaduras a serem restauradas.
- A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os homens receberam dos céus. Com ela não podem igualar seus tesouros que a terra encerra nem que o mar cobre; pela liberdade, assim como pela honra, se pode e deve aventurar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pôde vir aos homens.
Se aprendi algo foi isso: somos paridos de nossas mães e caímos de bunda em um lugar muito vasto e confuso chamado mundo, onde nada faz sentido, cercado de pessoas tão perdidas quanto nós, e crescemos e saímos por aí tentando entender, aprender, tentando tirar uma canção de toda essa cacofonia, em busca de algo para nos salvar. Pra sobreviver, para tornar tudo mais tolerável e sobreviver, cada um precisa se agarrar a algo, encontrar uma maneira de botar ordem no mundo, no seu mundo. Uns encontram sentido na religião, outros no trabalho. Líbero Uns encontram sentido em outras pessoas, no amor. Outros não encontram nada, e passam a vida inteira lutando para não se afogarem no próprio ceticismo.