spoiler visualizarAntonio 10/08/2019
Chapeuzinho Amarelo - Análise
Para fazer uma boa análise, precisamos saber que essa obra é uma PARÓDIA da original. E o que é isso? É uma nova leitura que modifica, subverte, questiona ou ironiza a obra que todos conhecem. Mas COMO isso acontece?
Vejamos o começo: ERA A CHAPEUZINHO AMARELO. Percebemos que não se utiliza o “Era Uma Vez” imemorial, que faz referência um passado muito antigo. E isso acontece porque essa não é uma história antiga. É um passado que pode ser bem recente. Indicação para a criança de que existem muitos tempos: o passado antigo, e o passado que pode ser um mês atrás, um passado que a própria criança pode utilizar: “quando eu era pequena...”
E essa Chapeuzinho não faz nada: “Já não ria. Em festa, não aparecia. Não subia escada, nem descia. Não estava resfriada, mas tossia.” Percebe-se que ela se define pelo NÃO-fazer. A única coisa que ela faz — tossir — é sinal de fraqueza. E também não brincava de amarelinha.
A explicação vem em seguida: O Medo. Medo de minhoca, de sol, de sujeira, de comida, de tudo. “Então vivia parada, deitada, mas sem dormir, com medo de pesadelo.” “Era a Chapeuzinho Amarelo”. Começamos a perceber que o verbo ERA (ou seja, o passado recente) está sendo enfatizado.
E aí se revela o seu medo do LOBO. “Um Lobo que nunca se via, que morava lá pra longe, (...) numa terra tão estranha, que vai ver que o tal do LOBO nem existia.” Ao contrário da narrativa tradicional, que mostra um Lobo cuja realidade é inquestionável, abre-se a possibilidade de esse LOBO ser apenas fruto da IMAGINAÇÃO. Curiosamente, o desenho mostra dois olhos dentro de uma caverna escura — do Lobo? Se não for do Lobo, de quem será?
A imagem seguinte mostra que a sombra da Chapeuzinho Amarelo tem um formato de Lobo. Em outras palavras: a primeira imagem indica que há um lobo, e a imagem seguinte mostra que ele é imaginário (há a frase “Um Lobo que não existia”). Permanece a dúvida!
Quando ela, de tanto pensar no LOBO, de fato encontra com o LOBO, ele tinha um “bocão tão grande que era capaz de comer duas avós, um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz e um chapéu de sobremesa.” Ora, então o Lobo existe. Mas esse Lobo é muito parecido com o Lobo da história original, só que mais exagerado: pode comer muito mais pessoas e coisas de uma vez só. A partir daqui, existe um novo elemento muito claro: o HUMOR, que fica evidente pelo EXAGERO, que faz referência aos contos tradicionais (avós, caçador, rei, princesa) e pela mistura com elementos contemporâneos: panelas de arroz, o chapéu que pode ser da Chapeuzinho. O exagero absurdo e a mistura remetem a uma paródia do tipo farsesco (Farsa: narração que provoca o riso; narração burlesca, risível.) Ou seja, o Lobo começa a não ser levado a sério.
A partir daí, Chapeuzinho foi perdendo “o medo do medo do medo de um dia encontrar um Lobo”. “Depois acabou o medo e ela ficou só com o lobo.” O desenho mostra Chapeuzinho cara a cara com o Lobo – o medo que é enfrentado!
“O lobo ficou chateado de ver aquela menina olhando pra cara dele, só que sem o medo dele. Ficou mesmo envergonhado, triste (...), porque um lobo, tirado o medo, é um arremedo de lobo.” Em outras palavras, o que fazia o Lobo ser terrível era apenas o Medo. O Lobo tenta se impor, mas não adianta. É como se a menina — e o leitor — percebesse que aquela história de engolir avó inteira, e rei, e princesa, é uma lorota. O Lobo insiste, mas ela estava “com vontade de brincar de outra coisa.” Note-se: o verbo “brincar” com “de outra coisa” indica que toda a história do Lobo pode também ser uma brincadeira: um jogo.
O Lobo fica revoltado e gritou seu nome 25 vezes. Mas de tal forma que LOBOLOBOLOBOLO acaba soando como BOLO. E eis que a menina grita “Para assim! Agora! Já!” E o Lobo parado do jeito que estava virou um BO-LO. Bolo de Lobo Fofo. A situação da história original se inverte, pois é o lobo quem tem medo de ser comido: “Com medo da Chapeuzim. Com medo de ser comido com vela e tudo, inteirim.” Se as sílabas podem ser invertidas, transformando a essência do Lobo, a situação também se inverte.
A Paródia se firma, nesse caso, como “Jogo Verbal”. Se uma palavra nos provoca medo (mais do que a coisa em si, é bom que se diga), então basta jogar com as sílabas, desconstruindo aquele ser terrível, o Lobo que vira Bolo. Essa solução tem um quê de “Neurolinguística”, mas sem entrar nesse mérito, precisamos lembrar que a criança de fato brinca com os sons, e se diverte ao descobrir associações inesperadas.
O que veio antes: a Palavra ou o Ser? No Princípio era o Verbo, o que parece ser confirmado por essa narrativa. Sem a palavra LOBO, não haveria o medo do lobo. Com Lobo transformado em Bolo, também não há. E a Chapeuzinho, que não tem a menor vontade de comer o BOLO de LOBO, pois prefere o de chocolate, descobre essa “Mágica”: todos seres que dão medo podem ser transformados, “Raio virou orrái, barata é tabará, a bruxa virou xabru e o diabo é bodiá”. Basta jogar com os sons, e a essência tenebrosa dos seres é modificada! A palavra tem poder.
Bem significativo, é o fato de que essa história que começa com “Era a Chapeuzinho Amarelo”, passa a ter verbos no PRESENTE: “Não tem mais medo de chuva nem foge de carrapato. Cai, levanta, se machuca, vai à praia, entra no mato, trepa em árvore, rouba fruta, depois joga amarelinha (...)” Como já suspeitávamos, o Passado (Era...) se transforma em um Presente muito dinâmico, e nesse Presente a Chapeuzinho manipula as sílabas para transformar em coisas. Ou seja, nós temos a possibilidade de transformar os nossos medos.
Se na história original a moral da história era NÃO DESOBEDECER AOS PAIS, a moral agora é outra: ser inventivo, e não levar muito a sério as ‘autoridades’ que deveriam ser temidas. A Paródia, como se vê, pode modificar muito uma obra.
Não é demais lembrar que Chico Buarque escreveu esse livro na época da Ditadura Militar. Ele tinha sido vítima da Ditadura, mas ela já estava enfraquecida na época da publicação (1979). Sim, o grande medo já tinha passado. E não é exagero dizer que Chico Buarque fez a mesma coisa que Chapeuzinho Amarelo: manipulando os sons, as palavras, ele enfrentou a Ditadura, compondo canções com variados recursos (metáforas, o duplo sentido, a ironia) para enfrentar, criticar e ridicularizar a Ditadura que o tinha levado ao exílio. E tudo isso pode ser explicado à criança. Sim, ela tem capacidade de entender que Chico e a Chapeuzinho são, na essência, a mesma pessoa.
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