Letícia 20/11/2012"Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer"Você provavelmente leu ou ouviu falar desse daí. O romance, publicado em 1951 , é bastante famoso, infelizmente não apenas por méritos literários. Mas que livro hoje em dia é? É moda agora abandonar padrões estéticos e artísticos, e hoje um livro tem que ser útil em algum contexto social, político ou ideológico. Existe todo o tipo de bobagem sendo dita por aí. Acusam-no de terem “inspirado psicopatas”, outras vezes o elogiam como se fosse um tipo de “manual do jovem desajustado” e até mesmo caem naquele velho lugar comum que todo tipo de crítica limitada e porca precisa afirmar: que o livro “critica a burguesia”. Me poupe! Vai fazer passeata, vai, comunistinha de merda!
“Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lengalenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso. Em primeiro lugar, esse negócio me chateia e, além disso, meus pais teriam um troço se eu contasse qualquer coisa íntima sobre eles. São um bocado sensíveis a esse tipo de coisa, principalmente meu pai. Não é que eles sejam ruins – não é isso que estou dizendo – mas são sensíveis pra burro. E, afinal de contas, não vou contar toda a droga da minha autobiografia nem nada. Só vou contar esse negócio de doido que me aconteceu no último Natal, pouco antes de sofrer um esgotamento e de me mandarem para aqui, onde estou me recuperando.”
Li o Apanhador três vezes na vida e me irrita bastante toda essa fama de leitura pra se fazer na adolescência. É bastante presunçoso pensar dessa forma, de maneiras que não posso explicar sem desenvolver uma tese sobre pessoas que conseguem fazer uma desleitura monumental de um livro. Eu sei que o Holden Caulfield é um garoto de dezessete anos, imaturo em diversos aspectos e é o narrador da história, mas ser um adolescente problemático não é pré-requisito pra se identificar com ele. Esse não é o ponto. Não é a droga de um livro de auto-ajuda, afinal. Isso é literatura! E aquele mimimi de que O Apanhador é o livro mais chato, batido e menor do SalingezzzZzZZzzz… Bitch, please. Um autor que recebe carta branca da New Yorker para escrever qualquer coisa que ele quiser logo em seu primeiro conto para a revista não tem obras menores. Nem vem.
O Apanhador no Campo de Centeio é uma narrativa bastante coloquial e aparentemente prolixa da perambulação do protagonista em Nova York por alguns dias, adiando a volta para a casa e o confronto com a família, já que foi expulso da escola. Não confunda com aquela bobagem idiota que pseudo-escritores imberbes se trancam no quarto pra escrever. Estamos falando de prolixidade organizada. E a linguagem superficialmente simples exige mais do que se imagina. É que boa parte das pessoas pensam que basta ser “sincero” e “natural” e você também vai produzir algo do tipo. Vamos combinar? Fazer literatura é muito mais que isso, e uma narrativa com esse aspecto informal é tão bem elaborada quanto a mais rebuscada. Sinceridade não é requisito pra escrever bem. Domínio de linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, e conhecimento são as qualidades realmente necessárias.
“Uma vez ele disse a mim e ao Allie que, se tivesse de atirar em alguém, não ia saber para que lado apontar. Disse que o exército estava praticamente tão cheio de filhos da puta quanto os nazistas. Me lembro que uma vez o Allie perguntou a ele se até que não era bom ter estado na guerra, porque ele era escritor e assim teria um bocado de assunto para escrever. Ele mandou o Allie ir buscar a luva de beisebol dele e perguntou quem era o melhor poeta da guerra, se o Rupert Brooke ou a Emily Dickinson. O Allie respondeu que era a Emily Dickinson.”
Holden é um ser humano em crise, com uma sensibilidade excepcional, se sentindo solitário como nunca, quase sempre só admirando crianças e coisas ingênuas e pondo defeito em todo o resto da humanidade. Ele entra em contradição o tempo todo. Mas isso não é uma coisa ruim. Não é bem que não queira crescer e todo esse tipo de coisa, embora esteja sempre deprimido pensando que algumas coisas nunca deveriam mudar. Ele só sabe que não vê espontaneidade nas pessoas, tudo parece muito irreal e sem significado. É disso que o livro fala, é isso que aflige o personagem, todo esse fingimento e encenação na vida… E qual o objetivo? Holden está realmente preocupado. Há milhares de pensamentos incríveis passando pela cabeça dele, mas ele não se sente disposto o suficiente pra explicar, nem o péssimo vocabulário dele poderia. Mas estão sugeridos por toda a história, e é preciso muita maturidade pra percebê-los através da leitura.
“Muita gente já tinha chegado de férias e acho que havia mais ou menos um milhão de pequenas por ali, sentadas ou em pé esperando os namorados. Garotas de pernas cruzadas, garotas de pernas descruzadas, garotas com pernas fabulosas, garotas com pernas pavorosas, garotas que pareciam boazinhas, garotas que, se a gente fosse conhecer, ia ver que eram umas safadas. Era realmente uma paisagem interessante. De certo modo, também era meio deprimente, porque a gente ficava pensando no que ia acontecer com todas elas. Quer dizer, depois que terminassem o ginásio e a faculdade. A maioria ia provavelmente casar com uns bobalhões. Esses sujeitos que vivem dizendo quantos quilômetros fazem com um litro de gasolina. Sujeitos que ficam doentes de raiva, igualzinho umas crianças, se perdem no golfe ou até mesmo num jogo besta como pingue-pongue. Sujeitos que são um bocado perversos. Sujeitos que nunca na vida abriram um livro. Sujeitos chatos pra burro. Mas é preciso ter cuidado com isso, com essa mania de chamar certos caras de chatos. Não entendo bem os chatos. Juro que não.”
J. D. Salinger morreu no início de 2010 e isso foi o fim de uma das vidas mais misteriosas da literatura. Em 1953, dois anos depois da publicação de O Apanhador no Campo de Centeio, o autor abandonou Nova York para se estabelecer numa propriedade rural em New Hampshire, onde pouco a pouco foi se afastando do mundo até se tornar um verdadeiro eremita. Ninguém sabe o motivo que o levou à reclusão, o que existe não passa de expeculação. Sinto que o estou irritando, falando ao seu respeito, e que o corpo dele está dando pulos lá dentro do túmulo. Acho que vou ter pesadelos essa noite. É que Salinger queria que seus livros fossem lidos somente pelo que são, e não por quem os escreveu. Ele desejava que fossem publicados sem ilustração, orelha, prefário ou posfácio. Sem biografia ou foto do autor, sem a listagem de outras obras de sua autoria, sem nada escrito na contra-capa, sem propagandas e adaptações cinematográficas.
“Juro por Deus que, se eu fosse um pianista, ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso, ia ter raiva de viver. Não ia querer nem que me aplaudissem. As pessoas sempre batem palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário. Seja como for, na hora que ele acabou e todo mundo estava aplaudindo como uns alucinados, o safado do Ernie deu uma volta no banquinho e fez uma reverência fingida, bancando o humilde. Como se, além de ser um pianista bom pra burro, fosse também um sujeito um bocado humilde. Era um troço cretino pra diabo aquilo dele ser metido a besta e tudo. Mas, de um jeito meio engraçado, senti pena dele quando acabou a música. Acho que ele nem sabe mais quando está tocando bem ou não. A culpa não é toda dele. Em parte, os culpados são aqueles bobalhões que batem palmas como uns alucinados: eles são capazes de enganar qualquer um, se tiverem uma chance. De qualquer maneira, o troço me fez sentir deprimido e podre outra vez, e quase apanhei meu casaco e voltei para o hotel, mas era cedo demais e eu não estava com muita vontade de ficar sozinho.”
Então me lembro desse trecho acima. Não sei se explica a atitude do autor. Mas se tem uma coisa que acredito é que não existe essa história de dizer que – por exemplo – você e eu gostamos de um mesmo livro. As pessoas pensam que encontraram afinidades por causa dessas coincidências superficiais, mas a verdade é que nunca gostamos do mesmo O Apanhador no Campo de Centeio. Eu me irrito absurdamente com outros fãs de Harry Potter (não tenho vergonha de assumir, falo mermo), já quem detesta e critica não me causa nenhuma reação minimamente exaltada. Aí fico pensando sobre como me sentiria se milhares de pessoas idiotas gostassem do meu trabalho. Classificaria como idiota qualquer pessoa que tivesse uma interpretação diferente daquela que acho cabível, óbvio. Imagine ter que ler todo tipo de resenha estúpida por aí (incluindo esta) e não poder xingar o imbecil e dizer que ele não parece ter realmente lido o que escrevi. E como se não bastasse, essas pessoas ainda gostariam de me conhecer, saber com quem durmo ou se realmente bebo meu xixi e todo esse tipo de curiosidade inoportuna, que excede em muito o que eles têm pelas vidas dos meus personagens. Pior que isso, só mesmo se me sentisse honrada por tanto interesse equivocado.
O mais engraçado – a ironia do troço todo – é que Holden diz que livro bom é aquele que, quando você termina, sente vontade de ligar pro autor e poder conversar horas a fio com ele.
clorofilarosa.blogspot.com.br