Tânia Souza 12/09/2011
As forças das lendas, dizem, está em quem as espalha
Cira e o Velho é um dos livros mais legais que tive a oportunidade de ler este ano. A linguagem límpida e econômica do autor, mesmo em trechos com maior trabalho de descrição, dá agilidade sem perder o foco nos detalhes importantes. Ser preciso sem ser raso é muito bom. Ah, ainda quanto ao aspecto físico do livro, além da capa belíssima, é ilustrado com traços que podem ir do sombrio à leveza. Aliás, são muito bonitos os desenhos que Walter faz nas dedicatórias dos livros.
Quanto a trama em si, como indica a sinopse, muitas batalhas terão lugar nesta aventura, assim como traições, enigmas e eventos surpreendentes. Ao leitor caberá a delicia de descobri-los. Homens de além-amar, guerreiros dos Palmares e criaturas do folclore nacional sob um prisma inovador permeiam estas páginas. O mito está presente, mas nem sempre como o leitor espera. E não apenas alguns, vários deles. Destes eventos e aspectos aventurescos, não farei maiores comentários. Por hora, contento-me em estar com estes personagens tão cativantes, transitando entre os caminhos ainda não desbravados de uma terra nova, cheia de possibilidades e disputas, até o frenesi contemporâneo dos grandes centros.
Então, é hora de começar. Mas...
“Mas por onde começar?”
“Por onde, então? Por Norato ou pelos pais de Norato e Maria Caninana? Talvez pela mãe de Cira?
Ah, sim... por que não? Comecemos por um lugar comum: todo grande herói, ou heroína, precisa de um vilão, ou vilã, a altura.
Comecemos pelo Paulista.”
Boa escolha, caríssima figura narrativa. Gosto da idéia de começar pelo Paulista. Mas também gosto de subverter a ordem.
Começo por... você.
Que nos cativa e surpreende. O foco narrativo do romance alterna-se em primeira e terceira pessoa de forma muito interessante. Entretanto, com suas viagens e pesquisas, com sua obsessão por Cira, quem nos conduz pela trama narrativa? Além de diferentes fontes e mais 50 horas de gravação e cinco cadernos de anotações, não exatamente transcritos, é sempre por suas palavras que adentramos no fascinante universo de Cira e o Velho. E sua figura se concretiza com carinho para mim, devido ao passeio que oferece.
E a seu convite, também eu “quero falar sobre Cira”.
Esta Cira dos olhos negros e vividos tem em si resquícios de sereias no falar.
“Ouvir o riso de Cira era andar nos domínios da loucura e da luxuria” (p. 109)
A personagem me lembra uma tempestade: é afoita, é valente e ao mesmo tempo, carente, tem uma certa meiguice que se torna impossível não gostar e torcer por ela. De fato, a filha da bruxa Guaracy e de Cobra Norato não é uma garota comum. O que esperar de uma moça vestida em couro escamado e vermelho escuro, cabelos negros que se movem ainda que o vento esteja ausente e que carrega nos ombros um crânio que... que... (bem, deixo ao leitor o prazer da descoberta). Bom senso? Nada, é guiada pela paixão e pelo impulso. Humana. Ou quase.
É Cira.
Entretanto, foi marcada pela violência e sua meta principal é a vingança. Aliás, a vingança é um dos motes da narrativa. De uma forma ou de outra, está sempre presente. Mas entre as paixões que permeiam o romance, a ganância é, com certeza, a mais cruel.
Cira tem tanta alegria quanto ódio e sede vingança. E no seu caminho, surge uma figura que, além de essencial a ela em vários momentos, encanta não só a Norato e a Cira, encanta principalmente o leitor. Estou falando de Nhá.
“Meu... meu nomi. Ié Nhá, sim sinhora.”
Nhá. Dela, devo dizer que é uma querida. Sim, eu a adorei. Com sua simplicidade e sabedoria, quase imagino os olhos arregalados de espanto, ou não, conforme o que a vida lhe apresentava. Nhá nos aparece quase assustadora. Ancestral. E o era, de fato. Mas transita de criança a mulher, de menina a velha sábia com uma velocidade surpreendente, mas bem coerente. E seus olhos contam da vida vivida além do comum. Olhos de quem aceita o inusitado e a magia com naturalidade.
Na sua busca por vingança, Cira, na maior parte do tempo acompanhada por Nhá, irá perseguir este que nos foi apresentando no principio: o Paulista. Domingos, O Velho, como era chamado pelos capitães. Pai, como foi chamado pelos índios. Este que era apenas “o mais eficaz e eficiente caçador de gente.” Acompanhado por um exército composto por índios e mamelucos armados, e ocasionalmente, por outros capitães, era temido e odiado. A descrição do personagem feita por Walter Tierno não poderia ter sido mais precisa, nos apresenta visualmente, ainda que com palavras, essa figura tão complexa cujo sorriso poderia ser mais terrível que a ferocidade natural de um rosto marcado. Afinal... “Tudo em seu rosto era assustador. Quando sorria – o que era raro – provocava aqueles arrepios que sobem pelas costas em morrem num espasmo no alto da cabeça.” O Velho era um guerreiro guiado pela ambição, sem espaço em si para sentimentos além da luxuria, do ódio e da sede de sangue. E seu caminho será marcado pelo desejo de vingança que ferve no coração de Cira. Gostaria de falar mais do Paulista, mas seria spoiler demais, apenas dele devo comentar a força, a esperteza e o inusitado. Ah, e claro, a extrema crueldade.
“Domingos fechou a boca, que ficara escancarada durante o linchamento de que participara, e engoliu saliva grossa, misturada com o sangue de alguma das crianças.”
Mas que distração a minha. Falei de Cira. De Nhá. Do Velho. No entanto, dois irmãos, duas criaturas fascinantes do nosso folclore merecem atenção especial: Cobra Norato e Maria Canina.
Cobra Norato é vermelho como a paixão que inspira. Maria Caninana é branquíssima, assim como Cira. Enquanto um é alegre e apaixonante, a mágoa, a crueldade e o desejo de vingança (sim, mais uma vez, ela corroendo os destinos) marca a vida de Maria Caninana. Acho que já da pra imaginar, mesmo para quem não conheça a lenda, que os dois são criaturas serpenticas com um raro dom: metamorfosear-se em humanos. Sedutores, fascinantes e capazes de magias indescritíveis. Repletos de paixões tão presentes nos seres comuns. E fraquezas que nem sempre conhecem.
Além deles, outros personagens desfilam nas teias narrativas. O Caraíba, primeiro intermediário entre Caninana e O Velho. Guaracy, a linda bruxa mãe de Cira, que fascina até mesmo o inconstante Norato, parente de sereias e conhecedora de feitiços cujos preços são altíssimos. O Senhor das Mentiras, que manipula e joga para sempre conseguir o que deseja. Tabatinga, guerreiro e valente, um dos outros filhos de Norato. As sete noivas, tão perdidas de suas individualidades que assim são chamadas, e que ainda assim, me comoveram e surpreenderam. A Morte, que surge como uma apaixonante e birrenta menina.
Criaturas místicas e folclóricas. Sereias, lobisomens, mboitatás, guardiões das matas, princesas, cidades perdidas e tesouros inimagináveis. Árvores tão antigas que se movem e falam aos que ainda sabem ouvir. Os fascinantes reis dos animais: o Rei Tatu, o Rei dos Tamanduás, o Rei-urubu e o Rei-gavião.
O que eles vivenciam juntos? Somente lendo para descobrir.
Um outro aspecto que chamou bastante minha atenção é a musicalidade presente no texto. Explico: o texto apresenta trechos quase sinestésicos e passagens poéticas 'pra mais de lindas', como esta: “Do rio, saiu uma linda mulher, feita de carne e música.” O sinestésico vem mesmo a misturas de sensações, cores, sabores e principalmente sons. A magia das criaturas intensifica e age nos sentidos humanos de uma forma muito interessante.
“Ouvir a música do urubu-rei era como tomar um vinho muito quente em um dia muito frio e senti-lo aquecer todo o corpo, despertando uma energia estranha abaixo do umbigo. Nhá a sentiu. A sensação veio de sua barriga, subiu pelo seu peito, espalhou-se pelos braços, formigou nas pontas dos dedos... veio-lhe uma vontade danada de chorar. Não de tristeza, nem de alegria, mas de êxtase (...) não demorou que seu êxtase se transformasse em puro medo.”
Cira e o Velho é um romance que desmistifica o aspecto lúdico que tomou conta do folclore nacional. Reinventa os mitos. É sombrio, repleto de batalhas e cenas violentas em vários aspectos. É também de histórias de pessoas, plenas de paixões e atos inconsequentes, como deve mesmo ser. E neste caso, também o são as criaturas mágicas. Porém, não é apenas de sombras que esta história é feita, uma saga divertida, emocionante e bastante surpreendente.
“As forças das lendas, dizem, está em quem as espalha”
Pois mais uma lenda me ganhou definitivamente, confesso, adoraria ler mais sobre Cira e os personagens maravilhosos que estas páginas me proporcionaram conhecer.