Pri | @biblio.faga 28/07/2020
Ver o lado bom é um exercício que, infelizmente, ainda sou muito melhor pondo em prática quando se tratam das minhas leituras, do que em relação à minha própria vida.
Assim, admito que poderia fazer inúmeras ressalvas quanto ao livro, porém, mais uma vez, escolho me ater aos seus méritos.
Embora, a meu ver, não tenha sido dado enfoque suficiente com relação à cultura massai, apenas o fato de trazer à tona a realidade de tribos nômades já possui seu inegável valor, afinal, você não pode ficar instigado/curioso sobre algo cuja existência desconhece, e o livro serve como um belo pontapé inicial para o contato com esse vasto universo.
A formação de Leona em antropologia sociocultural e, principalmente, a afeição de Aida à sua “segunda” mãe chamam atenção à necessidade de respeitarmos uma cultura que não é nossa, mas que tem valores tão bonitos como a “criação” das crianças por todas as mães a tribo, a adoção orgânica de filhos que perderam os pais, essa noção de vida compartilhada, de uma verdadeira comunidade.
Quando digo respeitar, não digo ter um pensamento acrítico, mas sim evitar a reprodução de um olhar superficial, posto que enviesado [uma visão ocidental] sobre crenças e práticas, cuja complexidade e importância desconhecemos. Jane, em vários momentos, fornece um belo exemplo de como não ser e/ou agir.
O maior mérito do livro é a riquíssima e primorosa abordagem da temática da maternidade. O ser ou tornar-se mãe é construído de uma forma muito real. A autora consegue falar sobre suas diversas formas e nuances: Simi e seu desejo de ser mãe, sua generosidade, sua entrega e seu instinto natural e maternal; a rejeição de Leona, em contraponto, a dedicação excessiva de Jane a esse papel.
A personagem Leona desmitifica a crença milenar de que toda mulher nasce com instintos maternais ou que deseja ter filhos, demonstrando empiricamente como o mito do relógio biológico não passa de mera imposição social, a ser enfrenta e rechaçada. Contudo, infelizmente, essa realidade de muitas mulheres não é suficientemente abordada na literatura e essa ausência de debate colabora para manter como temas tabus assuntos relevantes como a depressão pós-parto, a maternidade real e não romantizado, e a possibilidade de não ser uma fonte de realização pessoal.
Assim como toda vivência é marcada por inseguranças, agruras e prazeres que lhes são próprios, a maternidade também o é, não seguindo uma fórmula certa ou ideal. As três mães do livro mostram como esse processo é, ao mesmo tempo, igual e diferente para cada mulher, e, como tem as diferenças, também podem gerar conflitos, válidos ou não.
Como dito acima, embora com várias ressalvas, foi uma leitura agradável com altos e baixos.
~ Quotes:
“Assim como todas as crianças da manyatta, ela era filha de todos, livre para comer e dormir com qualquer uma das mães. Dessa forma, a ligação de Leona com Adia permaneceu a mesma que tinha com todos os bebês à sua volta: afetuosa, mas distante, vista através de um telescópio, detalhada, mas remota.” (p. 33)
“Eu queria que você estudasse; assim, quando se cassasse, poderia ser mais esperta do que o marido. Um marido pode bater na esposa, pode tomar tudo o que ela tiver, mas nunca pode tirar as coisas que ela sabe.” (p. 47)
“E havia algo mais infeliz do que uma mulher que não poderia ter filhos?” (p. 49)
“Você é minha filha. E agora é uma mulher, e logo será uma esposa. Sua vida será como a minha, mas talvez não a dos seus filhos. Talvez eles possam ter um horizonte mais vasto” (p. 48)
“Especulou se, talvez, o lugar onde a pessoa nascia transformava as suas células ou se o ar que a mãe respirava enquanto você nadava dentro dela contribuía para o seu corpo, para a sua mente. Talvez o lugar onde a concepção ocorria desencadeava a própria história singular daquela pessoa. Se fosse isso, Adia era uma criança de poeira e cheiro de lenha e gado. Leona jamais poderia fazê-la se esquecer disso.” (p. 90)
“Ninguém podia escrever o futuro a partir do passado” (p. 116)
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