Lili 24/10/2022
Importante marco das narrativas vampirescas, ainda que não seja minha preferida
Romuald está prestes a vivenciar o momento mais aguardado de sua, até então, curta passagem na terra, a ordenação como padre, que desejou febrilmente desde a infância, “nunca havia saído para o mundo”, o mundo era “o pátio do interno colégio e do seminário” para aquele devoto fervoroso que frente a frente a Clarimonde naquele evento tão importante veria sua devoção dividida e ganharia um portal para um novo mundo tão distinto do que conheceu até li.
“A partir daquela noite, minha natureza de alguma forma se duplicou, e surgiram em mim dois homens, que não se conheciam um ao outro. Ora acreditava ser um padre que sonhava a cada noite que era um cavalheiro, ora um cavalheiro que sonhava que era padre. Não podia mais distinguir o sonho da vigília e não sabia onde começava a realidade e onde terminava a ilusão."
Os elementos sobrenaturais desse conto foram seu grande brilho para mim, uma exploração bem distinta da ideia de vampiro que se popularizou, o poder de sedução está presente, assim como esse caráter boêmio que mais recentemente ficou resguardado aos vilões nas obras vampirescas de maior repercussão, nessas histórias tão duais e pouco interessantes muitas vezes. Não há bem e mal claros em “A Morta Apaixonada”, Clarimonde e Romuald são seres ambíguos, quadros de algum preto, algum branco e infinitos tons de cinza, mas como padre, o entorno de Romuald logicamente se voltará contra Clarimonde que é tida como a figura diabólica que o desvia do caminho.
A sensação de confusão que o sono/sonho causa é explorada para as visitas, não fica claro por um tempo se as coisas são ou não são um delírio. Romuald não está esgotado, adoecendo, apenas aflito com sua vida dupla, tendo em mente que precisa escolher uma das duas, racionalmente mais inclinado a Deus, mas sentimentalmente absolutamente entregue ao outro mundo e é essa disputa que a gente acompanhará ao longo das linhas.
O que não me agradou muito, no entanto, são características esperadas para época de publicação, auge do Romantismo, e que podem ser um atrativo a mais para algumas pessoas, não foi meu caso: longas discrições físicas da Clarimonde em vários e vários parágrafos em sequência e de forma idealizada, as hipérboles românticas que já não são bem digeridas por mim há algum tempo, assim como a ideia de amor à primeira vista que ainda tendo por base um caráter sobrenatural envolvido na atração sempre é um incômodo, não consigo me desfazer disso.
Sobre edição, outro trabalho impecável da Editora Wish, aqui em parceria com a Clepsidra, com ilustrações lindíssima e um rico material extra, incluso outros contos do autor, as notas de rodapé também são algo que gosto bastante, além de ajudar a compreender a obra e despertar os debates de algumas questões problemáticas do livro, realçam as referências utilizadas pelo Gautier evidenciando a riqueza do conto.