Hector 09/07/2023
Diálogos e fronteiras em um livro oral
Cheguei ao livro de Nêgo Bispo, publicado pela Ubu, pelo fio da polêmica e das críticas negativas advindas sobretudo do que eu imagino ser uma parcela de pessoas próximas ao marxismo. Dentre elas, pessoas qualificadas, que costumam travar debates sérios. Entretanto, os comentários depreciativos com os quais travei contato antes da leitura foram, de modo geral, típicos de um marxismo preguiçoso, que trabalha por petições de princípios e baba de raiva se não enxerga a palavra "revolução" nas primeiras 5 páginas de algum livro. Acho que é relevante dizer que sou marxista. Trato a revolução como horizonte absolutamente necessário, considero a luta de classes não um jargão ultrapassado e reducionista. Ao contrário, é um conceito que reflete a realidade, filosófica e sociologicamente sólido, como pouquíssimos conceitos conseguem fazer. Insatisfeito (ou até mesmo raivoso!) sairá o marxista dessa leitura caso nela queira encontrar qualquer continuidade de análises marxistas sobre a realidade.
Partindo disso, entenda-se: Nêgo Bispo é uma voz quilombola, formado por mestres quilombolas no Piauí, primeiro a ser alfabetizado em sua família. Isso deve informar o leitor de que este livro é uma versão escrita de ideias que circulam tradicionalmente de modo oral, a exemplo do que podemos observar em escritos de indígenas como Ailton Krenak e Davi Kopenawa. Por isso, creio, a estrutura organizada a partir de pequenos textos curtos reflete bem esse modo de saber. Lê-se, aqui, um quilombola aceitando fazer parte do jogo colonialista da escrita, porque sabe que isso pode render frutos. A existência desse livro é, sim, uma tentativa de dirimir o etnocentrismo das relações. Atitude similar é o mínimo que se espera do leitor não quilombola (seja ele marxista ou não).
Os pontos mais importantes do argumento de Nêgo Bispo, a meu ver, concentram-se na tentativa do autor de apontar como o paradigma humanista projetou e projeta, na teoria e na prática, padrões relacionais colonialistas. De fato, o humanismo enquanto construção filosófica hegemônica é fruto da modernidade. Filósofos atuais vêm tentando levantar esse debate também, a exemplo de Emanuele Coccia, ao propor uma volta filosófica à "vida das plantas" como modo de recolocar a relação com o mundo. Nesse sentido, para Nêgo Bispo, o "humanismo" é construído como o esfacelamento de cosmovisões nas quais o chamado "humano" é um elemento dentre vários, sem estar posicionado hierarquicamente de forma destacada. Portanto, nossos modos de viver (os modos não indígenas, quilombolas, tradicionais, por assim dizer) expressariam uma cosmofobia.
Tal cosmofobia alicerça a reprodução parasitária e destrutiva da vida humana, impedindo o desenvolvimento dos outros tipos de vida. A fim de denunciar e pressionar essas dinâmicas, Nêgo Bispo enfatiza o que chamou de "arte de denominar", isto é, propor palavras que expressem melhor um modo de viver não humanista, É nesse sentido que se entende a repetição de algumas palavras ao longo do texto, com destaque para a noção de "confluência", que se antagoniza à ideia de "coincidência". Trata-se, aqui, do que no jargão acadêmico chamaríamos de disputa no campo discursivo.
É por isso, por exemplo, que Nêgo Bispo chega a recusar os termos "cultura" e "política", por indicar que são constructos que já partem de um modo cosmofóbico de organizar o mundo. É óbvio que o comentário de dois parágrafos realizados por Bispo sobre o termo "política" pode ser considerado insuficiente ou reducionista para explicar toda a complexidade e polissemia do conceito em toda a tradição histórica, sociológica, filosófica, etc. Mas, adivinhem, Bispo não está nenhum pouco interessado em partir das nossas redes explicativas. Simplesmente isso. Ao contrário, o que me parece ser o ponto forte desses textos é a clara demarcação do autor da autossuficiência de um ponto de vista quilombola sobre tudo o que está falando, assim como a Caatinga pode também ser autossuficiente, para espanto dos sulistas e sudestinos, algo muito bem expresso na página 31:
"Nunca vamos atravessar para o lado do humanismo, mas também nunca vamos querer que o humanismo atravesse para o nosso lado. [...] A humanidade está aí, não vamos matar a humanidade. Mas como vamos nos relacionar com ela? Estabelecendo fronteiras.".
Esse ponto é crucial. Ele simplesmente desconstrói o recorrente lema progressista do "destruir todas as fronteiras", espécie de produto palatável à consciência cheia de culpa da esquerda branca. Nêgo Bispo quer demarcar as fronteiras, sim, quer fortalecê-las, pois defende e protege o modo de viver quilombola. É a partir disso, por exemplo, que o autor posiciona colonialistas e "decoloniais" (atenção, marxistas, inclusive a enorme parte dos decoloniais detratores do marxismo!) num mesmo grupo, o grupo do "eles".
Resta saber como esse diálogo proposto por Nêgo Bispo vai ser semeado também por nós. Não acredito que simplesmente desconsiderar um modo de vida que permanece forte, autossuficiente e desafiador depois de séculos das investidas assassinas do colonialismo possa trazer algo de produtivo. Bispo é direto, joga limpo: ele não está interessado em assimilar epistemologias, metodologias e análises que não sejam as coletivas-comunitárias a que ele próprio pertence. Lê-lo como uma reprodução enfeitada da ideologia liberal é pura e simplesmente não entender o ponto.
Acho difícil que pressupostos como o de Bispo, por um lado, e marxistas, por outro, possam coexistir em um programa político unificado. Como marxista, discordei de vários trechos, a exemplo do que Bispo fala sobre o mundo do trabalho. Isso não significa a impossibilidade de coexistência e aprendizado mútuo. Há que se pensar seriamente se fará parte da estratégia levarmos a sério a busca por uma posição menos etnocêntrica ou se, pelo contrário, iremos desvalidar livros como esse e, por extensão, modos de viver cuja história (assim como a história da luta socialista) permanecem sendo um incômodo a quem quer naturalizar o capitalismo.