Jennifer.Ernesto 14/02/2024
Lido em 10/11/2023
Disclaimer: esse livro rendeu mais de 1 hora de conversas em áudios com uma das minhas pessoas preferidas pelo whatsapp. (1) todo mundo sabe que odeio áudios; e (2) sou acadêmica, então óbvio que foi profundo.
Esse texto-resenha é só uma pincelada de 3 páginas sobre a primeira leitura do livro da geni. Ele é um livro espinhoso, é incômodo e é um monte de adjetivos bons e ruins ao mesmo tempo. Isto porque ele coloca o dedo nas diversas feridas, sendo elas: a colonial, do capitalismo, violência, machismo, os racismos, xenofobia, violência religiosa e assim por diante.
Eu estou fazendo outras leituras concomitantes a essa para trabalhar cientificamente com o conceito de interseccionalidade e afetividade. Dessa forma, os comentários que compartilhei no âmbito científico, serão feitos em textos científicos. Aqui, eu pretendo me demorar na proposta e na provocação corajosa de Geni Nuñez.
O livro é dividido em 3 partes: (1) Descolonização e relacionamentos; (2) Desmistificando a não monogamia; e (3) Os desafios da desconstrução, acolhendo inseguranças e angústias.
Na primeira parte, a autora começa o texto apresentando que ?a colonização pode ser sentida como uma desordem, um caos, porque a ordem e a normalidade são as características da colonização, de modo que a descolonização, quando se efetiva, produz justamente a desordem absoluta (sendo este um pensamento que aprendeu com Frantz Fanon). É por isso que minha aspiração neste livro é poder contribuir, um pouco que seja, para que essa desordem, esse chacoalhar aconteça.?
Geni pertence ao povo indígena guarani e ela avisa que ?a nossa diversidade como povos indígenas é imensa: somos centenas de etnias, cada povo com sua língua, seus costumes e modos de vida, que não devem ser generalizados.? E, por isso, ?vou compartilhar minha perspectiva reforçando sempre que ela não busca falar em nome de todos os parentes, muito menos generalizar nossas percepções.
E, nesse contexto, a autora diz que não há significado da palavra “posse” para o seu povo. Os guarani não pensam em “ter”, mas em “estar com”, não como exprimir esse conceito e traduzi-lo, ou seja, é essencialmente cultura.
A afetividade que a autora traz não é algo similar a carinho ou a um sinônimo para se referir a alguém com quem se tem vínculo afetivo-sexual, mas a um processo mais amplo, no qual afeto é compreendido no sentido de afetação.
Há uma breve demonstração da influência da colonização cristã e catequização, a cultura da moralidade, a oposição bem e mau, selvagem e civilizado, até os tempos atuais, em que o divórcio é permitido legalmente há pouco mais de 30 anos no ordenamento jurídico brasileiro.
A não monogamia não é algo novo e descolado, esse pensamento acaba por invisibilizar “as resistências indígenas que há alguns séculos lutam para manter seus modos de vida para além da monocultura. Eu chamo de ‘caravela epistêmica’, que é o costume dos não indígenas de descobrir o que já existia e assinar, ainda, sua autoria em conhecimentos que já vínhamos tecendo havia tanto tempo.”
Em paralelo, há como fazer uma associação ao conceito de epistemicídio, muito debatido na população negra, mas esse é um outro texto.
A defesa da monogamia e da heterossexualidade se alia e “sustenta o ponto de vista econômico, uma vez que a instituição familiar é uma das únicas nas quais o trabalho de limpeza, de cuidado das crianças, de feitura de alimentos não é remunerado às mulheres, que devem fazê-lo ‘por amor’. A sobrecarga e a exploração do trabalho das mulheres, especialmente das não brancas, são o que sustenta toda a vida capitalista.”
Na segunda parte, a autora cuida de desmistificar os termos relacionados a não monogamia, como poligamia, amor livre, relacionamento aberto, monogamia consensual. Mono = um; Gamia = casamento. Importante deixar claro.
Conceitos como responsabilidade afetiva e não ter tempo para se relacionar também são trabalhados. Responsabilidade afetiva não deveria ser sinônimo de monogamia. E, o conceito de tempo impõe que todas as diversas relações deveriam ter patamares de monogamia ao mesmo tempo, ou seja a espera de que haja uma entrega mútua, recíproca e exclusiva de todas as relações afetivo-sexuais que se sustentam.
“A não monogamia precisa se aliar à luta anticapitalista, à antimisoginia, à anti-heterocisnorma, entre tantas outras, sobretudo à anticolonial.” Isto porque a monogamia é muito mais que fidelidade a uma só pessoa. E um sistema jurídico e moral, repletos de direitos e deveres, inclusive punição - casar-se com mais de uma pessoa é crime de bigamia, punível com prisão.
Ainda, a autora traz um debate sobre infecções sexualmente transmissíveis - ISTs, e reforça que confiança não é método contraceptivo.
Um ponto que eu acredito que deveria ter sido mais explorado está expresso no seguinte excerto: “um homem não é machista porque se relacionou consensualmente com outras pessoas; é machista porque homens cis são acostumados a abandonar suas companheiras quando elas adoecem, por exemplo”. E, um pouco mais a frente, a autora faz um paralelo com o feminicídio e o quanto esse crime está atrelado aos homens cis. “Tanto é assim que no senso comum, ser mulher e ser esposa são frequentemente usados como sinônimos, “o marido e sua mulher”, enquanto para o homem cis ser homem e ser esposo são posições mais independentes.”
Na terceira parte, Geni nos convida a pensar os afetos de forma artesanal, nomeando-os como uma “artesania dos afetos”. Traz o sofrimento, o acolhimento durante esse processo, bem como argumenta pelo fim da hierarquia relacional, de modo a construir outras formas de se relacionar, que não tenha como fator intrínseco o “para sempre”, a indissolubilidade, bem como a retirada da autonomia das escolhas de cada um. Por fim, Geni cita Ailton Krenak para sustentar que “monocultura é a imposição monolítica de um mundo só”, enquanto o contrário disso é a expansão de muitos mundos.
Em alguns momentos, eu senti falta de alguns conceitos referentes ao capitalismo, a própria construção de família e um pouco mais das perspectivas culturais de outros povos em cima do que vem a ser ou não família e monogamia. Mas, compreendo que pode ter sido a opção da autora a omissão de algumas discussões e a concentração na sua perspectiva, como ela mesma disseno início do livro. Ela afirma no final, que esse é um convite a construção de outras formas de amar. Que podemos gostar do que ela propõe em sua totalidade ou parcialmente, e ela é bastante humilde e deixa claro que não tem intenção alguma de fazer de seu pensamento, uma monocultura.
Enquanto acadêmica e mulher negra, eu acredito que o livro traz boas provocações, mas ele não pode ser lido de forma isolada, então, deixo aqui algumas leituras que já fiz ou estou fazendo, que podem ser benéficas na construção de uma melhor afetividade, comunicação e saúde, inclusive:
A gente mira no amor e acerta na solidão (Ana Suy)
O livro do amor, vol 1 (Regina Navarro Lins)
O livro do amor, vol 2 (Regina Navarro Lins)
Novas formas de amar (Regina Navarro Lins)
Talvez você deva conversar com alguém (Lori Gotlieb)
Amor Líquido (Zygmunt Bauman)
Tudo sobre o amor (bell hooks)
O desafio poliamoroso (Brigitte Vasallo)
Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: Branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo (Lia Vainer Schucman)
(Jennifer Ernesto, 09/11/2023)