nflucaa 03/01/2024
Achei bem bom.
Primeiro contato que tenho com a obra do autor, escolhi este por ser curto (64 páginas). É um livro escrito em forma de fluxo de consciência, então é um enorme bloco de texto sem quebras e sem pausas. É, realmente, como se estivesse acompanhando o pensamento do personagem principal, que é anônimo por sinal.
O livro retrata basicamente um cara entediado que decide dirigir sem rumo pra se distrair e acaba com o carro atolado no meio de uma estradinha de terra envolta de uma floresta. Decidido a encontrar ajuda, ele sai do carro em meio a floresta e se perde, começa a padecer o frio da neve e o desespero da escuridão, de se estar perdido. Enquanto isso, você acompanha os pensamentos dele, as ?visagens? esquisitas que aparecem ao longo do tempo, como a aparição de um espectro branco cintilante, por exemplo. Retrata temas como falta de sentido, falta de direção, abandono, catarse religiosa e morte.
Enfim, é um livro bem escrito, que entretém e te prende. A forma de escrita pode não cativar todo mundo, mas pra mim deu super certo. Achei muito bom.
Daqui pra baixo eu vou dar pitaco na interpretação que fiz do livro, então pode conter spoiler e os comentários pressupõem que o livro tenha sido lido. Acredito que seja um livro bastante interpretativo, então cada um vai entender uma coisa diferente.
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A floresta congelada é uma representação do estado mental do personagem. Perdido, sem rumo. Assim como quando em meio ao tédio, ele decide dirigir sem rumo, uma vez atolado o carro no meio da floresta, ele decide seguir uma trilha também sem rumo, mas dessa vez a pé.
?Que direção seguir já não sei e, como não sei, posso seguir em qualquer direção. O que preciso mesmo é começar a andar?.
Quando perdido, surge então um elemento religioso fortíssimo, que é o espectro branco. Ainda que o próprio personagem não saiba se esta visão é real ou não, e nem do que ela se trata ? se um deus, anjo ou um demônio ?, é patente que trata-se de uma divindade, pelo dito do espectro cintilante ?eu sou aquele que é?, ecoando as palavras ditas por Yhwh a Moisés, o da Bíblia. Nesse sentido, aqui o personagem sofre uma espécie de delírio ou epifania, não dá pra saber. Mas o retrato da perdição na escuridão da floresta, seguido pelo acolhimento da ?brancura? que seria, ali, Deus, e, depois, Deus se recusando a guiar o caminho, a mostrar a saída, seja, talvez, uma confissão ou uma crítica: às vezes se está tão perdido e se recorre a uma crença em Deus que, no fim, resulta em mais confusão. Para narrativa é importante explicitar que encontrar com Deus não faz do personagem salvo ou alguém com orientação, mas alguém ainda mais confuso e perdido em seu próprio labirinto, que é a floresta. É como se Deus ampliasse ainda mais o sentimento de falta de direção, de curso. A sensação de abandono não cessou ao contactar Deus, pelo contrário.
Quando surge o pai e a mãe em meio a floresta, acredito ser uma espécie de delírio, mas que aponta algo real: ele está perdido por ter deixado o caminho dos pais? A mãe reclama que ele nunca ouve a ela. Ou será que, em meio a perdição de si, encontrar a família seja a forma de encontrar a si mesmo? Mas ele não consegue chegar aos pais, uma barreira intransponível os separa: a própria floresta. Eles andam e nunca se aproximam o suficiente, nunca se encontram. É como se nunca saíssem do lugar. A floresta paralisa: qualquer esforço de sair dela é se penetrar ainda mais nela. A figura familiar também é insuficiente para sair da floresta. Os pais não conseguem nem ver o filho direito, isso já diz muito. Eles só vêem a floresta, os problemas pelo qual o filho passa.
Surge, por fim, o homem de terno preto, camisa branca e gravata preta. Sem rosto, inclusive. Aqui, acredito, é a morte. Se aproxima docemente, gentilmente, e todos juntos se mergulham ?dentro? do espectro branco cintilante, que é Deus.
Pode ser que, em vez de ser Deus, o espectro branco cintilante seja simplesmente a neve enterrando o corpo já quase sem vida do protagonista, daí a sensação que ele tem de estar envolto na brancura e de repente já não mais respira o ar, mas a brancura.