Ana Aymoré 20/07/2020Porque vidas negras importamQuinto e mais conhecido romance de Toni Morrison, vencedor do prêmio Pulitzer de 1988, Amada (1987) é, sem dúvida, uma das obras de ficção mais extraordinárias da literatura norte-americana. A própria Morrison nos conta que a fábula foi inspirada pela história de Margaret Garner, uma escrava fugitiva que, acossada por seus perseguidores, matou um dos filhos (e tentou matar os demais), para impedir que a criança fosse restituída ao latifúndio do homembranco - essa é a grafia que se inscreve na mancha tipográfica do romance - e à condição de escrava. Na época, a lucidez e a aparente ausência de arrependimento por seu ato levaram a história de Garner a todos os jornais, o que inflamou a luta dos abolicionistas contra as Leis dos Escravos Fugitivos e contra a própria permanência do escravismo no sul dos EUA.
.
Essa matéria-prima histórica é, entretanto, apenas o primeiro passo na construção de uma obra grandiosa. Em termos estilísticos, apresenta a característica prosa poética, extremamente plástica e versátil de Morrison em seu auge, que, desde a abertura (em que somos literalmente empurrados para a atmosfera sufocante e assombrada do 124) até o desfecho (que nos devolve à "solidão que vaga"), não cansa de nos surpreender em lances quase mágicos de alternância de registros, vozes narrativas, pontos de vista, modos, gêneros, dicções. Ao mesmo tempo, sua substância nos devolve à força do mito trágico de Medeia, o qual, antes de ser cristalizado pela tragédia clássica, compreendia o infanticídio perpetrado pela feiticeira da Cólquida não apenas como o ato de vingança de uma mulher rancorosa, mas como uma prática de imortalização e um enfrentamento à ordem patriarcal dos tiranos. Em Amada, essa dupla potência ancestral do mito reverte-se para o destino desumanizador das escravas ditas "parideiras" nas sociedades escravocratas, responsáveis pela perpetuação da mão-de-obra cativa, e consequentemente, impedidas de terem em sua companhia e em liberdade, suas amadas e seus amados: "Ele sabia exatamente do que ela estava falando: chegar a um lugar onde você podia amar qualquer coisa que quisesse - sem precisar de permissão para desejar -, bom, ora, isso era liberdade."
.
E é justamente porque precisamos, ainda hoje, afirmar e reafirmar que vidas negras importam, apesar de já tão distanciados no tempo da escravidão institucionalizada, que Amada, para além de sua inegável qualidade literária, precisa ser um romance sempre lembrado. Até que os olhos de Sethe se iluminem novamente, que ela possa ter, que ela possa ser (sua) Amada.