Fabio.Nunes 16/05/2024
Provocativo
A vida não é útil - Ailton Krenak
Editora: Cia das letras, 2020
Este livro é um compilado de curtos ensaios do autor, publicado quando vivíamos a pandemia de covid-19.
Ailton faz parte da nação indígena Krenak, habitante das margens do Rio Doce, ou o que quer que tenha sobrado dele após os crimes ambientais das mineradoras.
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?Nós, Krenak, decidimos que estamos dentro do desastre, ninguém precisa vir tirar a gente daqui, vamos atravessar o deserto, temos que atravessar. Ou toda vez que você vê um deserto você sai correndo? Quando aparecer um deserto, o atravesse.?
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Essa foi uma leitura que iniciei sem qualquer expectativa, já que nunca havia lido nada do autor. E quão grata foi minha surpresa!
Vi-me admirado por suas ideias, expostas em curtos textos ? ora provocativas, ora assertivas, ora inspiradoras ? o que transformou esse pequenino livro numa ótima experiência.
Para além dos meus gostos e filosofias pessoais, as questões aqui colocadas nos colocam diante de duas perguntas fundamentais: o que estamos fazendo e para onde vamos?
O autor propõe em vários momentos a ideia de que há apenas uma vida no cosmos e nós fazemos parte dela.
Muito longe de mim dizer que a visão de mundo do autor é apenas bela e poética, pois para ele não é apenas uma abstração ? ele vive dessa maneira. O que eu sinto de verdade é tristeza. Por todos os indivíduos urbanos vivendo no capitalismo tardio, cada vez mais atomizados, mais desassociados da grande rede da vida ao nosso redor, e mais doentes.
Esse livro possui cinco ensaios:
1- Não se come dinheiro
?Pode ser uma ficção afirmar que se a economia não estiver funcionando plenamente nós morremos. Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do Banco Central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, com a economia deles. Ninguém come dinheiro.?
?Temos que parar de nos desenvolver e começar a nos envolver.?
?A vida vai dos oceanos para a terra firme, atravessa de norte a sul, como uma brisa, em todas as direções. A vida é esse atravessamento do organismo vivo do planeta numa dimensão imaterial. Em vez de ficarmos pensando no organismo da Terra respirando, o que é muito difícil, pensemos na vida atravessando montanhas, galerias, rios, florestas. A vida que a gente banalizou, que as pessoas nem sabem o que é e pensam que é só uma palavra. (...) Vida é transcendência, está para além do dicionário não tem uma definição.?
2- Sonhos para adiar o fim do mundo
?É mais ou menos o seguinte: se acreditamos que quem apita nesse organismo maravilhoso que é a Terra são os tais humanos, acabamos incorrendo no grave erro de achar que existe uma qualidade humana especial. Ora, se essa qualidade existisse, nós não estaríamos hoje discutindo a indiferença de algumas pessoas em relação à morte e à destruição da base da vida no planeta. (...)
não há parâmetro de qualidade nenhum na humanidade, que isso não passa de uma construção histórica não confirmada pela realidade.?
3- A máquina de fazer coisas
?(...) experimente sair de dentro desse carro, experimente ter uma relação cósmica com o mundo. Muita gente deve achar que só os pajés, ou pessoas que já alcançaram alguma forma de transcendência, podem ter essa experiência, mas isso que chamam de ciência está aí constatando o tempo todo a relação da Terra com o sistema solar, entre galáxias. Convoquemos a experiência de estarmos harmoniosamente habitando o cosmos: é possível experimentar isso na nossa vida cotidiana sem se render a todo esse terrorismo da modernidade.?
?Somos microcosmos do organismo Terra, só precisamos nos lembrar disso.?
4- O amanhã não está à venda
?Não tivemos capacidade crítica para pensar as consequências de uma crise sanitária nos grandes centros urbanos, e preciso confessar que tenho dó de quem vive nessas metrópoles. Muitas pessoas vivem sozinhas nesses centros, deixamos de ser sociais porque estamos num local com mais de 2 milhões de pessoas.?
5- A vida não é útil.
?Para além da ideia de "eu sou a natureza", a consciência de estar vivo deveria nos atravessar de modo que fôssemos capazes de sentir que o rio, a floresta, o vento as nuvens são nosso espelho na vida. Eu tenho uma alegria muito grande de experimentar essa sensação e fico procurando comunicá-la, mas também respeito o fato de que cada um tem a sua passagem por este mundo.?
?(?) a vida não tem utilidade nenhuma. A vida é tão maravilhosa que a nossa mente tenta dar uma utilidade a ela, mas isso é uma besteira. A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária.?
?Viver a experiência de fruir a vida de verdade deveria ser a maravilha da existência. Alguém vai dizer: "mas tem tanta gente que vive em dificuldade material, que tem que morar em lugares de miséria e violência"... Porém os lugares de miséria violência fomos nós que criamos, não têm existência por si.?
Recomendo a leitura.