Sabrina N. Justino 08/04/2023
Essa coisa sobrenatural que é viver!
Peguei A Paixão Segundo G.H. na biblioteca da faculdade e fiquei horrorizada. Não conseguia entender nada do que estava escrito ali. Hoje, tantos anos depois, termino a leitura completamente apaixonada. Vai entender! Será que tenho a “alma já formada” como ela disse ali na primeira página? Mudei minha opinião (ou melhor, medo) de Clarice depois de ler Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Acho que só na leitura deste (A Hora da Estrela não conta) é que finalmente entendi um pouco de Clarice.
Clarice quer entrar na coisa em si, chegar na verdade anterior às palavras, tocar na identidade real, naquilo que quase não pode ser dito. Olha esse trechinho: “Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo (...). Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio”.
Quem nunca se pegou olhando com espanto para a própria imagem no espelho ou um objeto, que iluminado pelo sol, ganha uma aura de mistério? Ela vê e escreve sobre isso, sobre o mistério da vida, do mundo que independe dela. Como ela mesma diz, “o divino para mim é o real”. É uma experiência de leitura ritualística dessa coisa sobrenatural que é viver. Muitos verão sem precisar mais que ver (palavras dela), infelizmente. Agora, aqueles que cruzam a linha invisível… Wow! Que fascinante e assustador o mundo… E a mente dessa mulher!
“Se a pessoa tiver coragem de largar os sentimentos, descobre a ampla vida de um silêncio extremamente ocupado, o mesmo que existe na barata, o mesmo nos astros, o mesmo em si próprio (...). E se a pessoa vê essa atualidade, ela se queima como se visse o Deus. A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima.”