Lucas 23/07/2017
Amor à terceira potência: Tríplice resenha
Razão e Sensibilidade: A serenidade pelas mãos de quem realmente sabia romancear
"Às vezes somos guiados pelo que dizemos de nós mesmos e com muita frequência pelo que outras pessoas dizem de nós, sem que paremos para refletir e julgar".
"Querida, querida Norland!, disse Marianne, enquanto caminhava sozinha diante da casa, na última noite de sua permanência lá, 'quando deixarei de ter saudade de você!... quando aprenderei a ter um lar em outro lugar!... Ah, casa feliz, se pudesse saber como eu sofro ao ver você agora deste lugar, de onde talvez nunca mais possa vê-la!... E vocês, árvores tão amigas!... Mas continuarão as mesmas... Nenhuma folha vai cair por causa da nossa mudança, nenhum galho se imobilizará, ainda que não possamos mais observá-las!... Não. Continuarão as mesmas, inconscientes do prazer ou do sofrimento que provocam e insensíveis a qualquer mudança naqueles que caminham sob a sua sombra!... Mas quem vai ficar para apreciá-las?'"
Estes dois trechos acima mencionados mostram bem o que Jane Austen representou para a literatura mundial e o que ela quis deixar para a eternidade em seu Razão e Sensibilidade, primeiro livro por ela publicado (anonimamente em 1811, 6 anos antes de falecer). Suas obras foram o pontapé inicial do que hoje o mundo conhece por romance em sua essência: a literatura a serviço de uma arrebatadora história de amor, repleta de filosofias e debates a respeito da sociedade em questão.
É importante, sempre que se fala de Jane Austen, que se situe a sua vida e obra no contexto histórico em que estavam inseridos. O Reino Unido vivia à época a chamada Era Georgiana, período este que assistiu a imensas transformações na Europa e que acabaram ajudando a moldar o mundo atual. O início da Revolução Industrial, a Revolução Francesa e suas consequentes Guerras Napoleônicas, o fim da Idade Moderna, por exemplo, influenciaram enormemente a sociedade britânica do período, independente de classe social. Em um ambiente onde a mulher de classe média ou baixa (normalmente no meio rural, onde estava inserida a imensa maioria da classe feminina) servia apenas como um "complemento" familiar e resumindo a sua vida a cuidar dos filhos, gerar outros e ficar em dia com obrigações domésticas, Ms Austen dedicou a sua curta vida a um contraponto a todas estas práticas unilaterais. E fez isso por meio de uma ferramenta quase inacessível às mulheres do seu tempo: a literatura, que era feita basicamente por homens e normalmente para homens. A sua fina ironia, que é tão reconhecida e valorizada por seus admiradores, está muito presente em Razão e Sensibilidade, seja em retratar a união entre casais (casamentos na maioria das vezes construídos por interesses) ou na hipocrisia e excessos materialistas existentes em camadas sociais mais superiores.
Estas ironias são firmemente retratadas nos diálogos, repletos de argumentações e cortesias. Para quem nunca teve contato com o estilo narrativo de Ms Austen, as conversas entre os personagens representam o grande diferencial de sua narrativa. Ao questionar de forma por vezes muito ácida, como uma agulha tocando repetitivamente em uma malha, os "valores morais" da época, a autora faz isto com muita classe, sem diálogos curtos e diretos; a argumentação que cada personagem faz nestes momentos, até mesmo em reflexões de caráter trivial, trás ao leitor tudo o que um bom romance de época deve possuir: inteligência, refinamento, humor, crítica social e grande sagacidade. O choque de duas características tão dúbias e ao mesmo tempo, complementares, que dão nome ao livro é o que sustenta toda esta "fábrica de ironias" de Jane.
A razão, representada pela primogênita Elinor Dashwood e a sensibilidade, advinda da sua irmã Marianne, estão sempre em "confronto", gerando profundos momentos de reflexão, seja sobre literatura, música e a sociedade da época. Não faz sentido que maiores detalhes da história sejam dados aqui, mas fica claro que uma visão mais prática e objetiva da vida é um importante complemento à uma existência baseada em apego e romance. O primeiro parágrafo da presente resenha, dito por Elinor demonstra bem este primeiro ponto e traça a sua personalidade; o segundo trecho, uma triste despedida proferida por Marianne, dá previamente uma ideia de seu caráter romântico e menos material. Ao se relatar o dilema razão x emoção em praticamente tudo o que envolvia a vida das irmãs, abre-se naturalmente um leque vasto de situações edificantes, repleto de valores morais e conversas inesquecíveis, que ensinam e emocionam.
Por estar na belíssima edição "3 em 1" em capa dura rosa da editora Martin Claret, Razão e Sensibilidade trás no leitor grande expectativa para a leitura do romance seguinte, Orgulho e Preconceito (obra mais conhecida de Ms Austen), que, se seguir esta premissa do choque de duas ideias antagônicas (o título sugere isso), certamente trará mais uma experiência muito agradável.
Seja você leitor (a) mais racional ou mais romântico (a), Razão e Sensibilidade é uma obra que se contrapõe de forma perfeita à superficialidade e os aspectos rasos do que se entende atualmente como romance, tão carregado de aspectos forçados e comerciais. Um livro agradável, com boas reviravoltas, um viés conservador (tão ignorado atualmente), com muita crítica social e uma linda história de amor e irmandade, capaz de cativar até mesmo corações mais céticos.
Orgulho e Preconceito: O amor, a união e os seus pormenores
"É verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro e muito rico precisa de esposa".
É quase uma ofensa que um leitor, ao falar de Orgulho e Preconceito, obra mais famosa de Jane Austen e que foi lançada em 1813, não mencione a primeira frase do livro, acima reproduzida. Um dos maiores "inícios" da literatura em todos os tempos, a premissa do casamento como uma essencialidade a um homem rico da Inglaterra do início do século XIX é uma "faísca" que cria uma das histórias mais bem elaboradas já escritas.
A peculiaridade de Orgulho e Preconceito começa em sua primeira frase e se estende às suas primeiras páginas. Pouquíssimos livros ditos como clássicos possuem em suas primeiras linhas tanto "frenesi" narrativo. A autora, sagaz e com um arsenal de ironias finas, vai direto ao ponto: o primeiro capítulo (curto, como a maioria dos outros 60) já trás um diálogo intenso, evidenciando o arranjo de casamentos, algo comum na época, misturado a uma abordagem mais cética (e não totalmente desinteressada) quanto a este tipo de enlace matrimonial. Com menos de 20 páginas, já há um encontro entre os personagens principais que choca, não por aspectos românticos ou até mesmo "melosos", e sim pela naturalidade com que ocorre, exasperando na escrita as grandes virtudes de cada protagonista que dá título ao livro.
Mr Darcy representa a vaidade, o orgulho e por vezes a arrogância, enquanto Elizabeth Bennet simboliza o chamado pré-conceito, o julgar antes de conhecer. Assim como em Razão e Sensibilidade, Austen mistura dois sentimentos humanos de uma forma que cada personagem, em busca de sua felicidade, precisa, em parte, enxergar o mundo com os olhos e a percepção do outro. Essa mistura provoca um grande avanço moral nos protagonistas, e essa transformação é que vai genialmente sustentando toda a narração. O orgulho e o preconceito não são, à primeira vista, termos antagônicos, mas a autora os descreve de uma forma que convence o leitor do contrário. Ambos se confundem em um escopo narrativo permeado pela busca do amor e da união, e nesse contexto, Jane Austen ensina que amar também é ceder.
Comparando Orgulho e Preconceito à Razão e Sensibilidade, livro que o antecede, seja na publicação no início do século XIX, seja na linda edição "3 em 1" da Martin Claret, é nítido que há neste segundo livro maior complexidade em todos os aspectos. Uma maior gama de personagens complexos e um maior desenvolvimento de suas relações geram uma história bem menos dramática e mais psicológica, com um enfoque muito maior ao íntimo de cada um dos componentes importantes da narrativa. Outra característica relevante da obra-prima de Ms Austen se refere à ausência de um vilão, um indivíduo com características sombrias e maquiavélicas (este é, aliás, um elemento também ausente em Razão e Sensibilidade, o que serve para distanciar ambas as obras de um mero romance convencional). O que há são personagens execráveis, seja pela promiscuidade de suas ações e pensamentos ou seja pela falta de inteligência, que a autora não mede palavras ao associar a determinados indivíduos. Estes aspectos eram muito presentes na realidade rural inglesa da época, servindo como uma importante ferramenta para Jane descarregar toda a sua ironia, mas não são capazes de trazer "vilania" a estes personagens (nem era esse o seu objetivo). Citar isso é importante porque o leitor amante de romances tradicionais quase sempre se depara, por exemplo, com uma mocinha que vive um triângulo amoroso ao lado de outra mais cruel na disputa pelo coração do cavalheiro. Este mote, tão batido e gasto, passa longe de qualquer análise sobre Orgulho e Preconceito.
É imensurável a riqueza de detalhes e emoções que a narrativa de Ms Austen provoca. Quando o andamento da história fica calmo demais, encaminhando-se para a monotonia, a autora trata de bombardear as suas páginas, seja com uma declaração de amor direta e inesperada, seja com um pedido de casamento nos mesmos moldes ou uma crítica social travestida de um fato surpreendente. Sua sagacidade é inigualável: são nestes momentos que o leitor percebe que está diante de uma obra-prima, que, lamentavelmente, não foi assim reconhecida enquanto a sua criadora ainda estava viva (Jane faleceu em 1817 sem ter a dimensão do vulto e da revolução que suas obras causaram e sempre causarão).
Orgulho e Preconceito, portanto, trás embutido em sua doce narrativa um dos maiores ensinamentos que um livro já gerou: as pessoas não devem ser julgadas pelas aparências, e até mesmo por suas aparentes atitudes. O futuro leitor descobrirá que mesmo a mais sensata das pessoas não é capaz de julgar de forma justa e prever as ações de outro indivíduo. O julgamento deve vir após o conhecimento sob alguém, e este conhecimento deve ser detalhado em todos os seus pormenores. Alguém, por exemplo, que age com aparente arrogância nem sempre o faz por desejo de machucar: sua atitude pode ser explicada pela sua personalidade, que exige um minucioso conhecimento prévio para que seja julgada. E este conhecimento pode gerar uma linda história de amor, baseada em alicerces firmes capazes de fundamentar todo o possível relacionamento entre as partes.
Persuasão: O último ato de uma vida delicada
"Às vezes acontece de uma mulher tornar-se mais bela aos vinte e nove anos do que dez anos antes; e geralmente, não havendo problemas de saúde ou de nervos, essa é uma fase da vida em que poucos encantos se perderam".
Persuasão foi o último livro escrito por Jane Austen, concluído em 1816 e lançado postumamente dois anos depois. Por ter sido elaborado durante as enfermidades de escritora, que causaram a sua prematura morte em 1817, é um livro mais curto e menos "refinado": as ironias finas que tanto caracterizam a autora ainda estão lá, mas Persuasão se define melhor como um romance de valorização feminina, nuance sempre presente em todos os escritos de Ms Austen, mas que era renegado a um destaque mais secundário.
Essa tese de valorização da mulher é explicada especialmente pela condição da protagonista, que tanto a difere das outras personagens principais das obras de Ms Austen. Anne Elliot é a segunda filha de Sir Walter, viúvo decadente que representa bem a aristocracia inglesa da época, com um forte apego à aparências e um certo egoísmo, expresso por meio do desdém que é direcionado a pessoas de classes inferiores, como soldados e marinheiros. A mais velha das irmãs, Elizabeth, muito apegada ao pai e igualmente fútil, tornava, junto com Sir Walter a vida de Anne um tanto quanto melancólica, pois a mãe de ambas faleceu cedo. Uma segunda irmã, Mary, a caçula e a única casada das três reforçava essa atmosfera cinza que cercava o bom coração de Anne. Na ausência de uma mãe, Lady Russell, também viúva e vizinha da família, surge como uma doce figura materna, que exerce enorme influência na protagonista, especialmente nas opiniões que formava a respeito de possíveis pretendentes.
Até aí, tudo é muito parecido com um romance tradicional de Jane Austen: uma menina doce, cercada de dificuldades, que busca um cavalheiro para construir uma nova vida. Isso seria correto afirmar se não fosse por dois pontos principais. O primeiro deles é a idade da protagonista: com mais de 25 anos de idade, Anne não é mais aquela "menina" que ainda tinha muito a aprender e a sofrer para tentar compreender o amor. Aliás, ela já vinha de uma decepção amorosa bastante séria, da qual não foi diretamente responsável, conforme será relatado no romance. Este é um cenário bastante interessante, pois Ms Austen esclarece, com tudo o que sua narrativa expõe, que nem sempre as mulheres solteiras mais maduras estão desprovidas de uma alma doce e decidida, que repelem a união. Isso retrata a sua posição particular, pois, apesar de ter falecido aos 41 anos de idade, a autora jamais casou-se. O seu próprio caso e o de Anne eram surpreendentes, já que, restringindo-se à protagonista, sendo solteira, "de família", e com uma idade de quase 30 anos na Inglaterra do início do século XIX era algo bem peculiar e, de certo modo, repugnante aos olhos da sociedade.
O segundo ponto que faz Persuasão destoar do "padrão Austen" de romance se refere à alta imprevisibilidade que os rumos da protagonista possuem, especialmente na primeira metade da história. Diferentemente de Razão e Sensibilidade e Orgulho e Preconceito (também componentes da bela edição "3 em 1" da Martin Claret), são diversos os candidatos a verdadeiro cavalheiro da narrativa. Em determinado ponto da história, o leitor se vê diante de três homens aparentemente adequados à encantadora Anne: o capitão Wentworth, que possui um passado amarrado à protagonista, o também capitão Benwick, melancólica, tímida e boa figura e Mr William Elliot, um primo distante e misterioso. Os três, inicialmente, são apresentados de uma forma quase igual no que diz respeito ao encantamento que despertam ou podem despertar em Anne, mas Ms Austen, de uma forma que só ela sabe fazer, vai desnudando toda a situação de uma forma que todos vão se "encaixando" na narrativa. Quando tudo está resolvido, o leitor percebe que, no momento em que eles foram apresentados como bons partidos à Anne, a autora fez isso com uma nuvem cinza, que aos poucos vai se dissipando, revelando o verdadeiro caráter de tais pretendentes.
Essa imprevisão, aliada a alguns acontecimentos inesperados (típicos de Ms Austen) e diálogos muito pertinentes até hoje (a conversa de Anne com um personagem secundário quase no fim da história sobre comparações entre homens e mulheres é genial), conduzem a um desfecho bem feito, onde reinam declarações de amor cheias de classe e substância, característica que engrandece qualquer história de amor, mas que, em se tratando da autora, são perfeitamente normais.
Um detalhe importante da edição "3 em 1" da Martin Claret é um complemento curioso após o fim da história. Ms Austen não havia, inicialmente, achado adequado o último capítulo da obra. Assim, ela eliminou esse capítulo e construiu outros dois, que, realmente, engrandecem mais o desfecho, e que foram incorporadas à narrativa original. Na edição citada da Martin Claret, esse último capítulo excluído é exposto, oferecendo ao leitor uma interessante análise do que Jane pode ter pensado ao ter desconsiderado essas últimas "cenas", que não mudam o desfecho, mas que foram elaboradas de uma forma nitidamente diferente.
Por estes motivos, aliados a uma já citada menor carga de ironias e a um tamanho mais reduzido, tornam aconselhável que Persuasão seja o primeiro livro a ser lido da autora, por um leitor que aprecia um verdadeiro e adequado romance. Se todo o autor tivesse como livro mais "fraquinho" da sua vida literária algo como Persuasão, certamente o mundo literário teria ainda mais qualidade, especialmente o do século XIX, onde Jane foi um dos seus primeiros e maiores símbolos.