brendaminah 21/04/2024Devorei de uma vez como tudo que já consumi da annie até hoje.
já disse uma vez e seguirei repetindo, hoje em dia poucas literaturas são tão acessíveis, democráticas e de qualidade tão inquestionável como a dessa diva.
entre todas os aspectos da prosa da autora, o que mais me cativa é a interrelação com a sociolinguística, com o ofício da escrita, do narrar e da palavra.
a meta linguística e o destrinchar da linguagem como objeto de marcador social, responsável por ditar toda a experiência do indivíduo ao decorrer de sua trajetória.
e não coincidentemente, a prosa da autora é integralmente autobiográfica, constituída por reminiscências próprias, relatos e memórias. e memória é linguagem, indiscutivelmente.
nessa obra em específico, ernaux relata o período que manteve uma relação, já mais velha e divorciada, de amor/obsessão com um homem casado. são páginas curtas, objetivas e diretas de uma descrição repleta de pura angústia, torpor e anseio pela presença desse indivíduo. ela narra, da maneira crua que lhe é característica, como seus dias e afazeres eram tomados pelo aguardo desse amante e sua vida era tomada pela divisão de tempo: ?com este homem? e ?aguardando desesperadamente por notícias deste homem?
não sei se é o comum aos leitores de annie, mas particularmente muito mais me interessa, além do objeto de narração, as estratégias e as reflexões meta linguísticas acerca do ofício da escrita e do poder da linguagem.
é brilhante, ao meu ver, a forma que ela narra a escrita não como exercício de relato, mas de repetição. de forma a permanecer no momento/ tempo do que é narrado e o uso espontâneo do pretérito imperfeito expressa justamente esse desejo inconsciente da autora de que esse tempo não cesse. exercício esse que aproxima não apenas a autora, mas o leitor do momento e do objeto da narração. isso ocorre justamente pois pouco a interessa explicar e justificar seu relato, sua história, o que não abre margens pra qualquer respaldo emocional ou até psicanalítico. prioriza-se o ?narrar pelo narrar?, nada mais.
a autora explora a escrita como ferramenta de preservação do que um dia não fará mais sentido no contexto extratextual, salvar o que o tempo leva de um relato, de uma história, significando pequenos elementos do texto que ela deseja remanescer, como o roupão do amante, por exemplo.
em determinada passagem, ao relatar a prática sexual, a autora conta que o homem não tinha familiaridade com palavras obscenas em francês, além de não ter vontade de usá-las, pois por ser estrangeiro, não se tratavam palavras carregadas de um interdito social, logo, eram tão inocentes quanto qualquer outra.
genial, não? mais uma vez a elaboração da língua e suas limitações, dessa vez no contexto amoroso das relações.
por fim, reitero que recomendo incondicionalmente a obra do fenômeno contemporâneo que é annie ernaux, merecidamente enaltecida e laureada. narra a experiência feminina, crua, completamente honesta, sem rodeios ou firulas, cada sentença perfeitamente simples, simplesmente perfeita.