yomaeli 07/02/2021
"Luz é a mão esquerda da escuridão e escuridão, a mão direita da luz. Dois são um, vida e morte"
"No princípio havia o sol e o gelo, e não havia sombra. No fim, quando tudo estiver terminado para nós, o sol irá devorar a si mesmo e a sombra engolirá a luz, e não restará nada senão o gelo e escuridão."
Um marco da ficção científica que consagrou Ursula K. Le Gun como uma grande autora do gênero, publicado em 1969 mas que se faz atual. À luz da época, os temas debatidos aqui são inéditos e imensamente relevantes, como ainda são.
Acompanhamos Genly Ai, um emissário, nativo da Terra, enviado a Gethen para convencer o povo getheniano a se integrar ao Ekumen, de onde vem. Essa proposta de integração, a priori, causa medo e distanciamento, e a partir daí já podemos fazer uma leitura de como sociedades diferentes se repelem à oferta alheia - cautela justificável, pois aqui, Genly, o Enviado, é visto como um pervertido, um estranho, uma ameaça aos costumes. Em Gethen, as pessoas não possuem um sexo fixo. Não há mulher e nem homem permanentemente. Eles passam por um período chamado kemmer, que é uma espécie de cio, quando se envolvem e se atraem por outro ser humano, e nessa relação cada um desenvolve e assume o órgão e a personalidade feminina ou masculina. Aliás, isso acabou me lembrando o conceito jungiano de anima e animus. Já Genly, para eles, está sempre no estágio do kemmer, sempre com o seu órgão e gênero desenvolvido, e por isso é um "pervertido", além de todas diferenças de altura, idioma, traços, projeções, etc.
Também é curioso acompanhar o personagem Estraven, que articula reflexões acerca do patriotismo - "o que é o amor pelo seu país? É o ódio pelo seu não-país?", o apego aos ideais, o pertencimento, a honestidade, humanidade e amizade.
Ursula não se explica excessivamente aqui. Ela apenas cria um universo e nos convida a uma experiência de imersão. É orgânico como vamos nos adaptando aos termos, às formas diversas de interpretações do clima, temporalidade e das tradições. Foi uma leitura que me tirou da minha zona de conforto e me propôs um lugar além. E foi prazeroso conhecê-lo.
E, sim, o livro pode demorar um pouco a engatar, são descrições e observações excessivas, mas um esforço que acaba valendo a pena final.
Em suma, a obra consegue nos fazer repensar sobre gênero, também sobre o tratamento com imigrantes - com toda a jornada, as dificuldades e os sofrimentos de Genly Ai -, sobre política e, acima de tudo, sobre como se estrutura o poder numa sociedade, que mesmo fictícia aqui, é ainda um aperitivo da nossa própria.