spoiler visualizarPedro 05/05/2011
Sobre os contos de fadas
Tudo o que é externo a nós nos é estranho. Talvez não haja como fugir dessa afirmação por dois motivos: primeiro porque sua validade se confirma do ponto de vista biológico: cada ser humano possui um código genético único e que não pode ser transferido inteiramente; segundo porque, uma vez que somos, o próprio código genético egocêntrico que nos afasta de tudo o que lhe parece estranho também reconhece em sua individualidade a pluralidade que faz a existência algo interdependentemente necessário. Afasta justamente porque reconhece, e reconhecer essa proximidade é nosso eterno dilema com o universo porque coloca em um labirinto sem saída a incompletude que nos faz sentir humanos.
À primeira impressão esse dilema parece ser um embate característico apenas do indivíduo que vive e constrói suas experiências dentro daquilo que costumamos chamar modernidade. Na verdade, pelo que conhecemos da história humana e também de nossa história pessoal, a incompletude do ser sempre esteve presente, desde a primeira pessoa. O que acontece é que essa percepção de incompletude nos levou, em um mundo sem Deus, a uma eterna sensação de fracasso e desilusão. Nos afirma o falecido Mattia Pascal: “– Creio que hoje não é mais tempo de escrever livros nem por distração. No tocante à literatura, como a tudo o mais, devo repetir meu costumeiro estribilho: ‘Maldito seja Copérnico!’”.
Quando pensamos nos contos dos irmãos Grimm, Perrault ou Andersen, no entanto, essa situação de incompletude se coloca estritamente no sentido moderno. É claramente perceptível a identificação desses contos com o universo burguês embalado pelas revoluções industriais e a Francesa. O que se mostra intrigante, entretanto, uma vez que a linguagem literária tende a um universalismo que a História não alcança, é que os contos não trazem apenas críticas que evidenciam um conflito entre classes datado de um determinado momento da História em que o sangue nobre ainda detinha uma força que não mais se vê na atualidade. Pelo contrário, muitos dos conflitos colocados em questão nesse tipo de Literatura ainda refletem questões que enfrentamos hoje, assim também como as fábulas de Esopo ou as contidas no livro Kalila e Dimna – porque, antes de tudo, são questões humanas.
Em um livro como a Bíblia, por exemplo, que podemos considerar como sendo um livro de ensinamentos a cerca de uma determinada moral conduzida por uma certa ideologia, assim como Kalila e Dimna, Alcorão, O Príncipe, encontramos uma das passagens mais famosas do Novo Testamento, a Parábola dos Talentos. Diz Mateus que um senhor mandou chamar seus servos e a cada um distribuiu um certo número de talentos, porém a porção que coube a cada um era desigual. Passado o tempo, todos os servos multiplicaram os seus talentos; apenas um, que ganhou um talento e o enterrou, de nada fez proveito. Seu senhor repreendeu-o dizendo: “Servo mau e preguiçoso, sabia que sego onde não semeei, e que recolho onde não tenho espalhado. Devias logo dar o meu dinheiro aos banqueiros, e, vindo eu, teria recebido certamente com juro o que era meu. Tirai-lhe, pois, o talento, e dai ao que tem dez talentos. Porque a todo o que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; e ao que não tem, tirar-se-lhe-á até o que parece que tem. E ao servo inútil, lançai-o nas trevas exteriores: ali haverá choro e ranger de dentes.”
Podemos pensá-la como sendo muito parecida com um conto de Perrault, O Gato de Botas. Assim como o servo, aparentemente o filho mais novo herda do pai um atributo de valor negativo se comparado com os outros dois irmãos. Entretanto, esse valor negativo, o gato, por possuir um par de botas, coloca o menino, metonimicamente, como se fosse uma extensão deste, em contato com riquezas nunca antes pensadas. Portanto, o que era antes um anti-sujeito para o menino pobre, reverte-se e torna-se seu aliado. O que difere essencialmente esse conto da Parábola dos Talentos, apesar da estrutura ser muito parecida, é seu sentido, pois nos transpasssa uma outra afirmação ideológica moral. Enquanto na Parábola a sociedade serviçal ainda faz a identificação entre seu senhores e o Deus bíblico, na sociedade burguesa do século XVII, o conto mostra um retrato do que foi a possibilidade de a scensão de uma classe não-dominante, por influência de uma religião contra-católica. Enquanto na Parábola a condição de se bem estruturar diante da sociedade esta estritamente presa a um sistema de castas, a burguesia ascendente evidenciada pelo conto de Perrault, que muitos pais burgueses devem ter contado a seus filhos, busca conseguir a mudança de uma classe social a outra, embora em ambos os casos o esforço seja necessário e fundamental.
Nesse sentido, é óbvio deduzir que há algo comum a todos os homens que existiram até hoje, uma vez que somos da mesma espécie, embora cada um seja um ser individual. Assim como cada livro ou cada conto é uma obra completa que se fecha em si mesma com uma verossimilhança própria mas que traz em si algo que, ao mesmo tempo em que permite o valor unitário, também busca os valores de comparação com outras obras tanto para que se estabeleça uma função lingüística comum que se utiliza das figuras de linguagem como para o embate com outras funções da palavra, como a Crítica.
Sendo assim, não se faz possível e preciso pensar que a natureza humana que se faz comum e acessível a qualquer homem é o que a Literatura justamente desnuda para nos mostrar? Essa busca incansável pelo inefável que rende em seu ápice a identificação da poesia com o sagrado, do aedo com o divino, talvez se reflita com maior clareza na sábia explicação que Hegel nos dá a cerca da natureza humana, dizendo que a racionalidade (em um sentido bastante distante do atual) do ser humano consiste na manifestação imitativa que o homem faz do universo físico que o circunda para criar seu próprio universo, de sentido.
O que coloca uma epopéia indiana traduzida para o árabe com infinitos paradigmas que se colocam uns dentro dos outros tão próxima dos conselhos de um homem que viveu no século VI a.C. em plena Grécia Antiga? E mesmo em um mundo onde não mais há o castigo divino mas unicamente o social, que propriedade é essa que permite que as estórias se recontem em outras formas, à luz de novas interpretações, feitas com base em diferentes papéis sociais que se consolidaram depois da queda de “antigas” estruturas comunitárias? Por que a preocupação em passar para as crianças determinados valores escolhidos dentro de um sistema e não outros? O estruturalismo coloca a explicação no que há de mais humano em cada ser desta espécie: o modo como as estruturas sociais são construídas, embora possa ser explicado por processos figurativos ad infinitum, conservam temas comuns e que nos servem para manutenção de determinadas ordens dentro da preservação de nossa espécie.
Entretanto, como a “seleção natural” nos colocou em uma dúvida eterna por termos comido justamente da árvore das explicações, creio que aquilo que queremos saber, explicar, entender, discutir, organizar, não pode ser explicado por um ensaio crítico – o que demonstra a própria capacidade humana de conseguir iluminar um mundo, embora esse mundo não possa ser visto a olho nu. Quem sabe pelas fábulas...