Bruno Oliveira 04/06/2022Um retrato a partir do Diário do Hospício, de Lima Barreto1. Fazia algum tempo que eu desejava ler algo mais “autoral” de Lima Barreto. É que, independentemente dos méritos de seus romances, tais textos me davam a impressão de que o intelectual que os escrevia era mais interessante do que eles. Em função disso, Diário do hospício foi exatamente o livro que eu procurava: uma obra em que o escritor fala por si mesmo, sem o recurso dos personagens. Longe de atrapalhar, a diminuição das interposições literárias tornou mais nítido para mim o intelectual instigante que foi Lima Barreto.
2. Confesso que não costumo me reconhecer muito nos escritores que leio, nem mesmo nos meus favoritos. Talvez isso ocorra porque eles pensem muito diferente de mim, ou melhor, porque tenham vivido vidas bem diferentes da minha: Descartes, Espinosa e Hume, por exemplo, receberam uma educação privilegiada a qual eu sempre invejei, além de terem ao seu redor pensadores brilhantes para polir seus crescimentos. Machado, Bill Waterson e Quintana, por sua vez, conquanto tivessem vidas mais modestas, possuíam um tino artístico que eu nunca tive.
Afirmo isso porque, embora eu não goste muito do escritor Lima Barreto, admiro bastante o intelectual e me reconheço nele um bocado. Comecei a lê-lo por Triste Fim de Policarpo Quaresma, naquelas leituras da adolescência, porém o retomei agora mais velho, notando muito em comum entre nós. É verdade que ele era um negro alcoólatra lá das primeiras décadas depois escravidão, algo cuja dimensão está muito além de meu alcance, todavia ele também era um intelectual paupérrimo e decepcionado com a vida, um homem infeliz e mentalmente doente, como eu.
“Digo com franqueza, cem anos que viva eu, nunca poderão apagar-me da minha memória essas humilhações que sofri. Não por elas mesmas, que pouco valem; mas pela convicção que me trouxeram de que esta vida não vale nada, todas as posições falham e todas as precauções para um grande futuro são vãs”, p.82.
3. Diário do hospício não é propriamente um diário, quer dizer, o livro não consiste num registro cotidiano da passagem do autor pelo hospício, mas num relato ponderado acerca daquilo que ele viveu por lá. Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, por exemplo, diariza ─ à náusea ─ a passagem do autor pela prisão, algo que Diário do Hospício nem se aproxima de fazer. Somente algumas coisas são relatadas e o autor ainda tenta dar-lhes certo sentido literário que está em franca construção ao longo das páginas.
Por sinal, o livro é inacabado tanto como texto quanto como projeto. Como texto isso fica um tanto óbvio desde o começo: ele não está completo, certas histórias simplesmente não se resolvem e, na última parte do livro, sobram uma porção de excertos dispersos que ainda seriam trabalhados pelo autor. Como projeto, por sua vez, esse inacabamento aparece aos poucos, a medida que percebemos que o autor descreve coisas que sabemos não ter acontecido (como a esposa que ele descreve, mas que jamais existiu), ou que ele muda abruptamente de um tom autoral para um tom literário, como se tivesse acabado de ter uma ideia. Segundo o prefácio, o autor pretendia transformar o livro num romance e essas “invenções” foram criadas para serem reutilizadas mais tarde.
“Se foi o choque moral da loucura progressiva de meu pai, do sentimento de não poder ter a liberdade de realizar o ideal que tinha na vida, que me levou a ela [à bebida], só outro bem forte, mas agradável, que abrisse outras perspectivas na vida, talvez me tirasse dessa imunda bebida que, além de me fazer porco, me faz burro.
Não quero morrer, não; quero outra vida.”, p.57–58.
4. Como Lima Barreto foi parar no hospício? Segundo ele próprio, a bebedeira o levou a desenvolver episódios de delírio, o que fez com que seus parentes o internassem. Entretanto, como o autor não entra em detalhes a respeito do que lhe ocorre, seu diagnóstico fica bem obscuro.
O psiquiatra interpretava que o álcool lhe causara certo dano (*), produzindo os delírios, porém o literato parece não concordar com isso. Ele interpretava o álcool como apenas um resultado, um sintoma de outras coisas citadas com discrição ao longo do livro: a pobreza, a falta de reconhecimento, a ausência de perspectiva e o enlouquecimento do pai.
Em certa passagem, Lima Barreto afirma que a situação do pai lhe causou um medo constante de precisar, a qualquer momento, enterrá-lo ou pagar por algum tratamento com o qual não pudesse arcar. Provavelmente, ele viveu em agonia durante muito tempo, imaginando que a qualquer momento sua vida poderia ruir, algo que lhe cobrou um alto preço. Nesse sentido, a bebida é menos uma causa e mais um sintoma de coisas mais profundas e complexas.
No entanto, é preciso intervir um pouco aqui, pois a interpretação de Lima Barreto deixa algumas lacunas. Conquanto seja fácil colher de sua situação familiar e social motivos para explicar por que ele enlouqueceu, seu texto apresenta algumas coisas que o tornam mais complexo do que isso. Por exemplo, num determinado trecho, Lima Barreto menciona que a “mania de suicídio” o acompanhara desde criança.
Ora, o ideário suicida na infância não é um dado trivial. Mesmo numa vida ruim, a ideia de morrer não costuma passar pela mente de uma criança, tanto que o suicídio infantil é bem menos comum do que o adulto. Com efeito, é difícil não postular que ele tivesse certa tendência deprimida desde a juventude, algum componente endógeno que fazia de Lima Barreto alguém ainda mais complexo do que ele mesmo pensava.
“Tenho orgulho de me ter esforçado muito para realizar o meu ideal; mas me aborrece não ter sabido concomitantemente arranjar dinheiro ou posições rendosas que me fizessem respeitar. Sonhei Spinosa, mas não tive força para realizar a vida dele; sonhei Dostoiévsky, mas me faltou a sua névoa”, p.94.
5. Lima Barreto não se resolveu com a literatura, não virou o escritor que pretendia, nem causou o impacto almejado em termos de crítica e público. Os revezes do racismo, da pobreza e da doença do pai o prejudicaram profundamente, negando-lhe uma situação material condizente com seu talento. Ao que parece, ser um intelectual promissor pouco importa quando se é negro.
Inclusive, mesmo sua saúde não escapou disso: os Diário do Hospício foram escritos em 1919 e o autor morreu três anos depois, do coração. Seu pai morreu dois dias depois dele, como que preso ao filho por um cordão umbilical.
A bem dizer, é fácil idealizar as pessoas de que gostamos e pensar que suas alegrias compensam seus sofrimentos. De fora, é simples justificar uma vida. Todavia idealizações desse tipo não funcionam bem com Lima Barreto, uma vez que ele próprio as recusa ao ser profundamente lúcido a respeito de sua infelicidade. Aliás, creio ser nisso em que mais me reconheço nele: nesse sofrer transparente que não se esconde, nem procura por consolações ilusórias. Não se trata de um pessimista que interpreta todas as coisas pela mesma ótica decaída, mas de um artista sensível, capaz de notar o peso invisível que as coisas colocam sobre nós e, pouco a pouco, arruína-nos. É claro, nisso e em sua audácia de confessar publicamente seu grande pecado:
─ Estou vivo e tem sido horrível.
(*) Algo que não fica claro nem mesmo no prefácio que acompanha a obra é qual seria, nesse período em particular, o estatuto do alcoolismo. Pensava-se no alcoólatra como um doente? Como um degenerado moral? Ou nada disso?
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