Tha 14/11/2015
Mais humildade, mais profundidade.
Resolvi ler esse livro primeiro como forma de incentivo aos autores brasileiros que se aventuram na fantasia, segundo porque simpatizo com o autor em suas participações em podcast. Entretanto, desde o início, o livro foi uma grande decepção.
O que me desanimou um pouco logo no começo, foi a premissa de que existem anjos homens e anjos mulheres e o fato de utilizarem armaduras e lutarem de espadas, arcos, maças, etc. Me pareceu um argumento simplório o fato de os anjos, que vieram antes da criação do mundo e que são praticamente imortais, utilizarem desde sempre, coincidentemente, o mesmo tipo de armamento que os humanos iriam inventar em determinado momento do curso de sua história (os quais para nós já estão ultrapassados, diga-se de passagem). Entretanto, admito que esse meu desânimo deve vir da minha idade. O público alvo, provavelmente adolescente e jovem, talvez não sentirá o mesmo que eu; apesar de eu estar muito familiarizada com a literatura infanto-juvenil e raramente sentir incômodo na falta de maturidade da premissa do livro. Na saga de Harry Potter, por exemplo, enquanto a escrita dos primeiros livros e a história sejam bastante infantís, a premissa do mundo paralelo bruxo, com todas as suas características, me pareceu bem construída o suficiente para que a história conseguisse amadurecer a ponto de acompanhar o amadurecimento de seus leitores.
Entretanto, uma das questões que mais me marcou no livro foi o tratamento dado às personagens femininas. Ainda que nesse quesito, o autor pareça ter se esforçado para inserir uma gama diversificada de mulheres fortes, tendo a co-protagonista importância tremenda nas resoluções dos conflitos (o que é um ponto bastante positivo), não há como ignorar algumas situações, como:
- O "bom e velho" uso da mulher como objetivo e impulso para o homem, usando inclusive o batido truque do sequestro e do mocinho precisar salvar a mocinha (reiterando que o autor se redime um pouco nessa questão quando a personagem feminina passa a ter importância decisiva e ativa no desenrolar da trama final).
- A insistência em criar situações nas quais as personagens femininas tenham que ficar nuas ou semi-nuas. Anjas guerreiras descritas com seios fartos que usam tiras de pano para cobrir o corpo, com aquela desculpinha esfarrapada de poder se movimentar melhor e mais furtivamente? Nenhuma mulher no mundo daria conta de lutar com peitos soltos, principalmente se eles são grandes! Não há desculpa para uma cena dessas! Não existe isso de que uma mulher (ou homem) tem que estar quase pelada para ser ágil! Sem contar a outra que fica "desnuda" durante uma luta porque somente a sua roupa virou pó, obrigando-a a lutar pelada, então a palavra desnuda foi repetida à exaustão para que não esquecêssemos da sua nudez; enquanto no único momento em que um homem ficou nu, a descrição foi tão sutil, que descobrimos a nudez dele por inferência e ele não foi chamado de "homem desnudo" sequer uma vez. Sem contar a succubus, que eu vou simplesmente ignorar aqui. Afinal, eu estou lendo literatura ou estou jogando um jogo de videogame machista? Por fim, um pequeno SPOILER: não se apeguem às personagens femininas, elas não duram.
Para não ser injusta, além do peso da co-protagonista, devo citar também que logo no começo o livro passa no teste de Brechdel, ainda que no desenrolar da trama, situações que envolvam mais de uma mulher no mesmo ambiente diminuam ao ponto de se extinguirem completamente do meio para o final do livro. Aproveito também para invocar Tolkien (o qual começou a escrever por volta de 1917), muitas vezes mencionado como machista por haver poucas mulheres nos livros, fato com o qual concordo; no entanto, mesmo o Tolkien pareceu tratar com mais respeito as pouquíssimas mulheres que passaram por suas histórias (todas usavam roupas, pelo menos). E não há como não celebrar Galadriel e Éowyn.
Outras coisas me incomodaram, como:
- A falta de profundidade dos personagens, pois nenhum deles me soou real, não senti o que eles sentiam e, em alguns casos, pareciam o mesmo personagem com nome e armadura diferentes.
Existe uma sutil diferença entre contar o passado de um personagem, ou explicar características de sua personalidade de realmente dar vida a ele. Às vezes mais importante são os maneirismos, pequenos tiques e detalhes que fazem com que o personagem se torne mais real, mais palpável, e faça com que nos sintamos próximos a ele.
- Também a falta de profundidade de algumas relações, como as paixões e amizades. A cena da primeira vez que os protagonistas se encontram tem um diálogo final que chega a ser constrangedor pela canastrice. Além disso, as relações de amizade que vão surgindo ao virar das páginas, não convencem. Surge um personagem novo, diz-se algo como "fulano era um dos melhores amigos de Ablon", passa um tempo, surge outro e logo vem "sicrano e fulanos eram os melhores amigos de Ablon", passa mais um tempo e surge outro personagem "terçano, sicrano e fulano eram os melhores amigos de Ablon" - pronto, é só acrescentar na listinha que eu tenho que sentir essa amizade de anos, mesmo que nunca se tenha mencionado o cara antes de ele de fato aparecer na história.
- Sempre que o protagonista pisava em uma cidade diferente, senão me engano com exceção do Rio (por quê??), o narrador simplesmente TINHA que contar uma parte da história da cidade. Eram informações que não acrescentavam nada ao enredo e as informações realmente significativas poderiam ser introduzidas em uma descrição mais simplificada da cidade ou mais fluidamente .
- Além disso, me foi extremamente angustiante ver o narrador explicar os mesmos fatos repetidamente, ou descrever mais de uma vez o mesmo personagem com as mesmas características. Se alguém se machuca e faz um corte, por exemplo, quando se menciona o corte posteriormente, o narrador reconta resumidamente como ele foi feito. Eu sei como ele foi feito, eu estou lendo o livro!
- E, não menos importante, me exasperei todas as diversas vezes em que o autor me contou coisas óbvias como se fossem grandes novidades. Houve uma situação em que os personagens encontram um mendigo e, no desenrolar da cena, vai ficando cada vez mais claro e gritante que o mendigo é um personagem específico que apareceu no início da trama. Ao final da cena, já estou careca de saber de quem se trata, mas o narrador faz questão de dizer no fechamento algo como "e o mendigo era o Fulano!!!", com as exclamações, inclusive.
O que eu também achei estranho é a necessidade de contar as histórias de vários dos personagens, como que para legitimá-los no livro, mas que muitas vezes não ajudam a dar vida e personalidade a eles, e a necessidade de contar fatos e explicar itens, nomes, lugares. Vejo autores que conseguem mencionar um universo inteiro de sua criação com tanta naturalidade, sem explicar de onde veio cada coisinha, como se o leitor já estivesse familiarizado com esse novo universo, como se já vivesse nele. E o leitor vai descobrindo a utilidade de cada coisa, e o motivo de cada coisa conforme o uso, conforme alguns diálogos, sem pausa para explicar, contar histórias paralelas, de onde veio, porque chegou, apara que serve. Algumas coisas nunca serão explicadas, e tudo bem. O leitor se sente parte da história quando ele é tratado como parte da história e não como alguém alheio que precisa de uma aula a cada 5 minutos.
Queria salientar também um trecho do livro o qual me faz coçar a cabeça até agora. Em determinado momento, já perto do meio do livro, a história é interrompida mais uma vez para contar algum fato importante do passado. Porém, diferente das outras vezes em que isso já havia acontecido, dessa vez, o passado é contado com narrador em primeira pessoa. Ele está lembrando sozinho? Não pode ser só lembrança, porque ele explica as coisas para alguém que não conhece os fatos. Para quem ele está contando isso? Em que momento ele está contando isso? Não há explicação ou justificativa.
Por fim, apesar das muitas críticas ao livro, não acho que seja um livro totalmente ruim. Valorizo, por exemplo, a vasta pesquisa histórica e regional do autor que fica evidente ao longo do livro. Também a sua criatividade é clara e achei muito interessante o modo como ele mistura diversas mitologias em um só universo. Porém, ainda que a história tenha vários aspectos interessantes, ainda acredito que ela poderia ter sido contada com mais humildade. Todo o ar épico, as batalhas exageradamente grandiosas, os personagens exageradamente fortes me fizeram sentir que estava em um jogo de RPG e não em um livro que deveria realmente ser levado à serio.