Gabriel 23/01/2021
''A beleza salvará o mundo''
O livro é bastante denso, uma leitura realmente cansativa. Para quem já está acostumado com as obras do grande escritor russo, Fiódor Dostoiévski, não há surpresas quanto ao estilo da escrita. O livro foi escrito em meio a um momento difícil da vida de Dostoiévski, que teve de transitar entre várias cidades, como Milão e Florença enquanto escrevia o livro, por conta de suas dívidas na Rússia, onde corria risco de ser preso.
Os primeiros capítulos do livro são bastante lentos e certamente, são os mais cansativos. Temos praticamente uma apresentação de cada um dos (inúmeros) personagens. Um trecho logo no início da obra, onde o príncipe Míchkin fala sobre suas experiências na Suíça, onde realizou um tratamento por conta de sua doença (a epilepsia, que também acometia Dosto (é sabido que o personagem tem grande teor autobiográfico)), foi de longe um dos mais marcantes que já li na obra de Dostoiévski, semelhante ao momento em que Raskólnikov confessa o assassínio em ''Crime e Castigo'', para Sonia Marmeladova. Nele, Míchkin fala sobre sua relação com uma mulher, humilhada pela própria comunidade onde vivia, inclusive pelas crianças - criaturas pelas quais o príncipe possui grande afeição. O príncipe explica o porque de sua predileção pelos pequenos, expõe toda sua característica piedade, a qual chegou ao ponto de beijar a moça - não por amor, mas por genuína compaixão por seu padecimento (temos aqui, um prelúdio de usa relação com Nastácia Filíppovna) -, bem como se esforçou de modo a mudar a imagem que aquelas crianças tinham da mulher humilhada
Há diversos momentos marcantes na obra, e os personagens, como sempre acontece nas obras do autor russo, são de uma profundidade e complexidade salutares. Nastácia Filíppovna, é certamente uma das personagens femininas mais marcantes do autor e seu desenvolvimento ao longo do transcorrer na história, é excepcional. Se Míchkin é a junção de Cristo e Dom Quixote, Nastácia é a antípoda do príncipe. Criada por Totski - um homem rico e abusador de menores (embora isso fique implícito na obra) -, após perder seus pais de forma trágica, ela recebe uma educação formal que a diferencia das demais mulheres de sua época, mas é essa relação de abuso, poder e dinheiro que se desenvolve entre ela e Totski desde cedo, que faz com que se sinta impura, corrompida, maculada e indigna de receber o amor de um homem bom, como o príncipe Míchkin.
Há outros personagens brilhantes na obra, como o orgíaco Rogójin; o capitão Ívolguin, um contumaz mentiroso e beberrão; o carismático jovem Kólia; o niilista Hippolít; o ganancioso Grávila Ardaliónitch, dentre outros.
Ao longo do livro, somos expostos constantemente a visão religiosa ortodoxa de Dostoiévski, são diversas as passagens que remontam ao apocalipse e a paixão de Cristo. Também temos questionamentos ao niilismo, outro tema bastante recorrente nas obras do autor; além, é claro, das típicas questões referentes a sociedade russa da época e as indagações sobre a cultura ocidentalizada que cada vez mais se fazia presente no país.
No final, somos apresentados ao dilema do livro: vale a pena ser bom? Aqueles que lerem a obra se depararam com um final bastante interessante, que vai ao encontro desse questionamento e remonta a perícopa da adúltera. Do autor dessa resenha, apenas uma afirmativa: em mundo corrompido pelo egoísmo, pela ganância e pelo ardor incessante do desejo, aqueles que como Míchkin, tentam ser bons e compassivos com o próximo, são taxados de, e tratados como, meros idiotas - como o personagem é chamado ao longo de todo o livro, sendo ainda vítima de intensos risos quase sempre que se dispõe a discursar sobre algo.
A leitura vale a pena, mas não recomendaria para iniciantes em Dostoiévski, que podem se assustar com a densidade da obra e com o cansaço que certamente sentirão ao ler o livro. A leitura é em diversos momentos monótona e desconexa da história principal, como um capítulo inteiro dedicado a uma conversa do príncipe Míchkin com o general Ívolguin, que jura ter sido pajem de Napoleão (!). A obra também demanda certo conhecimento prévio de teologia, história russa e literatura.
Ler Dostoiévski nunca será uma tarefa fácil, mas como em outras obras do autor, o conjunto da obra vale o esforço de ler este que foi, é, e talvez para sempre o seja, um dos maiores autores da literatura mundial.