RayLima 09/12/2023
Viver e aprender a rir
?Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo da estepe. Havia aprendido boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida.?
?O lobo da estepe? de Hermann Hesse é um convite a uma viagem para dentro de si mesmo. Um livro com influências da filosofia e da psicanálise que busca destrinchar o que há de mais profundo no ser humano. Harry Haller é o nosso protagonista, um homem intelectual, amante das artes e que cultua Goethe e Mozart. Um tanto pedante, ele despreza tudo o que não considera digno de atenção, seja a música do rádio ou a dança, o que o leva à uma vida de solidão. Aos 50 anos ele não vê mais interesse na vida, mas um pequeno cartaz, uma mulher e um músico vão levá-lo numa viagem psicodélica transformadora, fazendo-o questionar suas escolhas no passado e repensar seu presente e futuro.
?O Lobo da Estepe perecia por sua própria independência. Havia alcançado sua meta, seria sempre independente, ninguém haveria de mandar nele, jamais faria algo para ser agradável aos outros. Só e livre, decidia sobre seus atos e omissões. Pois todo homem forte alcança indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena buscar. Mas, em meio à liberdade alcançada, Harry compreendia de súbito que essa liberdade era a morte, que estava só, que o mundo o deixara em paz de uma inquietante maneira, que ninguém mais se importava com ele, nem ele próprio, e que se afogava aos poucos numa atmosfera cada vez mais tênue de isolamento e falta de relações.?
O livro começa de uma perspectiva de fora do protagonista, é a visão que os outros (pessoas comuns) tem do lobo da estepe. Um homem que causa tanto medo quanto fascínio pelo seu jeito ?excêntrico? e inteligência. Depois a narrativa passa a ser em primeira pessoa e aqui temos um olhar pessimista da vida. No meio temos uma quebra nessa narrativa em primeira pessoa e somos apresentados a um narrador em terceira pessoa que fala como se fosse uma voz superior, a consciência de Harry.
Através do Tratado do Lobo da estepe ele narra de outra perspectiva a vida desse homem que apesar de aparentar ser tão diferente dos outros, é na verdade tão comum quanto qualquer outro. Este narrador escancara quão simplório é Harry achar que é feito apenas de duas partes (a parte homem e a parte lobo), pois na verdade todos os seres são feitos de múltiplas, infinitas personalidades que se cruzam, se transformam e tem pesos diferentes ao longo da vida.
?Harry compõe-se não de dois, mas de cem ou de mil seres. Sua vida (como a vida de cada um dos homens) não oscila simplesmente entre dois polos, tais como o corpo e o espírito, o santo e o libertino, mas entre mil, entre inumeráveis polos.?
Após a interferência deste narrador o livro volta a ser em primeira pessoa, mas agora temos um protagonista mais humanizado. Herminia (alô Hermann!) entra em cena, ela, que se apresenta como o espelho de Harry, é o lado feminino dele mesmo. É quem vai impulsionar Harry a sair de sua zona de conforto, mostrando que a vida tem inúmeras possibilidades que ele sequer considerou.
?Não compreende, meu ilustre senhor, que eu lhe agrado e tenho importância para você exatamente por ser como um espelho seu, porque dentro de mim há algo que responde e compreende o seu ser??
Tanto as iniciais de seu nome (HH) quanto a idade de Harry nos dão uma dica de que o autor baseia-se um pouco em si mesmo para escrever este livro. Escrito em 1927, quando Hesse tinha 50 anos e passava por uma fase de grande influência da psicanálise em sua vida. ?O lobo da estepe? traz muitas referências autobiográficas, é como se o autor, assim como o protagonista, buscasse através da escrita uma forma de revisitar o passado para melhor entender o presente. Hermann Hesse, que em 1946 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, também é autor de Demian (1919) e Sidarta (1922), talvez seus livros mais conhecidos.
Este é um livro extremamente denso, mas apesar disso não é uma leitura difícil, é fluida e, principalmente o final, tem um ritmo eletrizante. Creio que minha bagagem cultural ainda não é suficiente para que eu compreenda tudo que o livro tem a oferecer em sua completude, mas o que pude absorver já me faz entender o porquê de ele ser considerado um clássico. Além da genialidade da sua escrita e enredo surpreendente. Ele nos faz refletir sobre coisas tão profundas e ao mesmo tempo triviais. Apesar do tom pessimista no começo, o livro termina com uma mensagem de leveza que com certeza eu vou levar comigo pro resto da vida.
?O senhor está disposto a morrer, seu covarde, mas não a viver. Ao diabo! Mas terá de viver! [?] O senhor tem de viver e aprender a rir.?