filipetv 15/06/2023
O último romance de Gabriel García Márquez, publicado em 2004, foi concebido ainda na década de 1990, embora uma amiga do escritor tenha afirmado que 20 anos antes ele já falava da ideia que desaguaria na obra "Memórias de minhas p*tas tristes".
Já no título, o livro apresenta polêmicas. Além do óbvio termo pejorativo, que fez algumas emissoras de rádio e TV da Colômbia proibirem seus locutores e apresentadores de mencioná-lo, há também uma ambiguidade em relação ao enredo, porque o protagonista se concentra em relatar sua relação com apenas uma pessoa e não com várias. E mesmo que se recorra ao hipérbato e se conclua que tristes são as memórias e não as p*tas, a questão do plural ainda permanecerá. O que nos resta é colocar esse mistério na vasta lista que García Márquez cultivou durante sua vida e carreira como escritor.
O livro conta a história de um homem que, no seu aniversário de 90 anos, decide dar de presente a si mesmo uma noite de sexo com uma adolescente virgem. Porém, quando chega ao quarto onde está a menina - que ele batiza de Delgadina -, percebe que ela está dormindo e decide não acordá-la. Ao longo do romance, essa prática permanece e ele se vê apaixonado por ela, só de observá-la dormindo durante várias noites.
Essa dinâmica é uma clara referência ao livro "A Casa das Belas Adormecidas", do prêmio Nobel Yasunari Kawabata (que também resenhei aqui), que empresta um trecho como epígrafe de "Memórias...". Tal dinâmica também revela dois temas recorrentes na obra de García Márquez: pedofilia e virgindade. Como metonímia da América invadida e violentada pelos colonizadores europeus, muitas crianças e adolescentes também o são por homens muito mais velhos cuja única intenção é a exploração de seus corpos.
Ironicamente, a iniciação sexual desses homens é em sua maioria com mulheres mais velhas, sejam elas prostitutas ou mesmo empregadas de suas casas, exatamente o que acontece com o protagonista do livro e que aconteceu com o próprio García Márquez. Porém, ao contrário do que aconteceu com o autor, essa violência repercutiu no personagem de forma a torná-lo incapaz de desenvolver afetos e de criar intimidade, até que ele encontra Delgadina, a primeira pessoa por quem se apaixona.
Esta não está nem de longe entre as melhores obras do autor colombiano. É perceptível certo automatismo na escrita e um retorno sem brilho a temas caros ao escritor, como o amor, o sexo e a morte. Mas essa análise talvez seja injusta, dada a grandiosidade do seu trabalho. Talvez se for analisado independentemente da comparação com clássicos como "Cem Anos de Solidão" e "O Amor nos Tempos do Cólera", "Memórias..." ganhe outra dimensão.