Enaia 20/04/2023
Fantástico
Eu diria que o livro é muito bom. Principalmente para aqueles que não tem conhecimento básico em ciência ou que nunca leu nada de filosofia da ciência, será um livro muito útil. Para aqueles que leram, ainda é um bom livro, pois pelo fato de estar constantemente falando de cultura popular, ele é muito instigante. Minha nota é 4.5. Muito bom mesmo. Dito isso, vou a alguns pontos mais específicos. Essa parte é bem pessoal (SPOILERS)
O livro tem um ritmo bom. O prefácio e o primeiro capítulo são bons, chamam a atenção. Depois, do 2° até mais ou menos o 5° capítulo, é mediano. Nâo é enfadonho, na minha opinião, mas não é a parte que mais prende do livro. Daí em diante é cada vez melhor. Os temas são bastante chamativos, as hipóteses do autor e as referências trazidas são muito interessantes.
Exceto pelo último. Se o capítulo "O caminho para a liberdade" (21) e o penúltimo, "Ciência e Bruxaria" (24) concorrem, de longe, para os melhores, o útlimo é de longe o pior. Digo pior em termos ideológicos, de solidez. É tão diferente este último capítulo que nem parece ter sido escrito pelo mesmo Sagan que escreveu o restante. Pode parecer até incoerente. Explico o porquê.
Sagan parece uma pessoa bastante sincera, que pensa com a própria cabeça e que se esforça na direção de ser alguém que analisa os fatos com o máximo possível de objetividade, sem tender para o favorecimento de um lado específico devido a um viés dominante. Aqui eu me refiro principalmente à história e à política e isso podemos ver em vários momentos.
Vemos aqui e ali o apontamento de um analfabetismo científico na China, do atraso da biologia evolutiva na União Soviética e a afirmação de que o comunismo era uma ideologia moribunda na União Soviética e que a economia planificada estava fadada a fracassar. Ao mesmo tempo, ele não se mostra um anticomunista fervoroso, pois nem por isso, como alguns, pensa que o capitalismo é o melhor possível. No capítulo 12 (a arte refinada de detectar mentiras), diz que é incoerente atribuir a baixa expectativa de vida ao final da URSS ao "fracasso do comunismo" e, simultaneamente, não atribuir a alta mortalidade infantil dos EUA (de 1995) ao fracasso do capitalismo. No mesmo capítulo o autor dá a entender que o neoliberalismo não é a saída, pois traz o exemplo dos lobbies feitos pela indústria do cigarro para desacreditar as divulgações científicas a respeito da nocividade do cigarro, ou seja, o livre mercado absoluto, sem a ingerência do Estado em algumas ocasiões, pode ser nocivo para nós e para a ciência. No penúltimo capítulo (a ciência e as bruxas), não chega a condenar a guerra do Iraque, mas reconhece que se manipulou a imagem de Saddam muito rapidamente (abrindo margem para o subentendimento de que ele talvez não visse o conflito com bons olhos, apesar de que a ausência de qualquer comentário a respeito da política externa dos EUA tenha sido decepcionante sobretudo aqui).
Ok, tudo isso (e as posições que ele vai tomando ou dando a entender em diversas passagens a respeito de variados assuntos, tais como drogas, feminismo, aborto, religião etc.) vai criando uma expectativa em você, talvez mesmo por ele ser uma figura complexa, por você não conseguir predizer o que ele dirá a respeito de um tema controverso em seguida. Isso é um bom ponto, pois é característica de alguém que tenta pensar com a própria cachola e é alguém com quem você gostaria de bater um papo. Mas quando chega no último capítulo... Pura propaganda estadunidense e afirmação de uma libertina liberdade de expressão!! Nem parece que o cara que se mostrava tão crítico e consciente escreveu este aqui.
Tem de tudo: diz que os EUA são a melhor democracia do mundo; que o cristianismo se tornou mais humanista e moderado no mundo todo por conta dos EUA (uma coisa é dizer que tiveram influência sobre o mundo, outra é apagar as lutas em cada país...); que alguém tem o direito de usar a foto do presidente para servir de tiro ao alvo; que um racista pode expressar sua opinião hedionda à vontade, podendo apenas ser contra-argumentado por nós.
Algo que achei particularmente bizarro é que ele cita o exemplo de um ex-Ku Klux Klan que se tornou, depois, juiz da suprema corte sem qualquer suspeita. Que lindo, mudou de opinião! Ainda nesse âmbito judicial, achei bastante ingênua como ele é idealista a ponto de considerar excelente a situação do país por conta de sua constituição, sem considerar como as leis são fiscalizadas e como as coisas acontecem de fato, além da piada de colocar a atuação dos tribunais estadunidenses como um exemplo de investigação científica. Tive até a impressão de que este último capítulo foi para dar uma suavizada no tom do livro (embora eu, que sou mais de esquerda, tenha achado ele bastante suave).
Outro ponto que me incomodou um pouco, mas que vou apenas mencionar sem me delongar, foi a rejeição à psicanálise. É compreensível porque ele o faz, afinal, ainda que não afirme isso, ele é um falsificacionista. No entanto, no capítulo 6, de alucinações (ótimo, por sinal) ele cita psiquiatras que explicam esse fenômeno quase que igualmente à maneira psicanalítica, só que excluindo o jargão e as instâncias psíquicas. A sensação é a de que, nesse caso, importou mais a autoridade conferida ao cientista do que à teoria.
Enfim, é um livro muito bom. Gostei bastante e provavelmente relerei os capítulos de que gostei. Recomendo.