Érica 08/02/2014
Índios: passado, presente e futuro
A questão indígena está bem em destaque nos últimos dias: especialmente devido aos Kaiowás e a demarcação de suas. Esta é uma discussão multifacetada que simplistas, sejam os mal informados ou de má fé mesmo, tendem a dividir em basicamente dois lados. E nos vemos em um confronto simulado entre Ruralistas X Indígenas.
Aqueles que se preocupam em obter informações sobre o assunto sabem que a situação não possui apenas dois lados e que é muitíssimo mais complexa do que uma mera análise superficial poderia sugerir: temos envolvidos os ruralistas (ou proprietários rurais, como soa melhor), sim. Proprietários invasores, grileiros – mas também gente de bem, descendente de colonos que obtiveram suas terras legalmente, concedidas ou adquiridas do Estado há gerações. Temos indígenas, habitantes primevos destas terras, pessoas que necessitam viver, se educar, criar os filhos, preservar sua rica cultura – e que possuem direito a isto tanto quanto quilombolas ou quaisquer outras comunidades tradicionais; mas há também os indígenas mal orientados por ONGs e órgãos governamentais aparelhados que são convencidos de que, por exemplo, têm direito a uma larga porção de terra se qualquer morto da tribo, mesmo que recente, tenha sido enterrado ali. As poções de terra adjacentes, se tornariam, por isso, “tradicionalmente ocupadas”. Além é claro, dos mais hilários: pseudo-indígenas, como aqueles que representam tribos historicamente extintas, mas que, qual página pop-up, simplesmente surgiram novamente e inexplicavelmente, sentindo-se cheios de razão exigindo terras.
É uma questão delicadíssima, a meu ver, não apenas porque envolva interesses comerciais e financeiros – os que possuem tais interesses têm, habitualmente, força e dinheiro para defendê-los por conta própria, estejam eles certos ou não. Para mim a questão é tão mais delicada porque envolve pessoas simples, sejam indígenas, sejam descendentes de colonos – que moram em terras que viram nascer seus avós e pais e onde eles mesmos viram nascer seus filhos e netos. Envolve a manutenção de culturas, de meios de vida, de tradições. Envolve o ter o que e onde comer, dormir, fazer novos filhos, rezar – questões tão mínimas, mas que são as que realmente importam pois fazem parte do viver com dignidade.
E há dois livros que mostram lados diversos desta mesma moeda e que nos auxiliariam, junto à informações recentes e consistentes – e não apenas algumas linhas ditas no facebook ou em outra mídia – a enxergar os muitos e delicados direitos que se chocam nesta questão tão importante que é a demarcação de terras indígenas.
Um deles, já mencionado aqui, é o Guia politicamente incorreto da história do Brasil, de Leandro Narloch, que trata de uma parte da história indígena que muitos preferem ignorar: que o sugerido desaparecimento de várias tribos não se deu por violência, e sim, pelo mergulho de antigos indígenas na cultura ocidental, gerando a tão temida aculturação. É importante conhecer esta versão, para que não se creia e se enxergue o passado da colonização como mero extirpador e esmagador de tribos indígenas. Ele cita registros de posse, mudança de nomes que reforçam esse seu lado da história que se opõe a um dos principais argumentos usados por algumas vertentes da defesa da causa indígena – o da aniquilação pela força, que sustentaria a base para uma reparação através da concessão de terras.
O outro, apesar de não falar diretamente da nossa realidade, pois trata da colonização dos Estados Unidos, é o Enterre meu coração na curva do Rio, de Dee Brown. Este trata do outro lado da história: não dos indígenas que optaram por mergulhar em outra cultura abandonando a sua (e vejam, isto não é um fenômeno limitado a este assunto, dos indígenas, mas é algo recorrente historicamente, sempre que há um povo tecnologicamente mais desenvolvido entrando em contato com outro), mas sim, daqueles que foram massacrados, enganados, confinados em reservas (que ora eram marcadas, ora desmarcadas). Daqueles que, quando dentro das reservas, não tinham acesso à alimentação, assistência à saúde, educação – enfim, a meios dignos de subsistência.
Vê-se ali, sustentando por vasta pesquisa histórica-documental, feita pelo autor que era bibliotecário e que se sensibilizou com o tema devido a um amigo de infância, indígena, o retrato triste da perda de povos bravos, mas amistosos, de seus líderes, suas tradições, sua fala tão poética.
É um retrato cru, comovente e, certamente, necessário – e que nos dá forte base para repensar nossa própria situação em relação à questão indígena, nesta moeda, que não tem apenas dois lados, cara-coroa, que é a demarcação de terras indígenas: mas muitas faces que precisam ser analisadas com justiça.
Principalmente porque, enquanto cidadãos brasileiros, fruto de um caldeirão cultural efervescente, não podemos permitir que nossa história, nossos próprios bravos, amistosos, com seus líderes, sua tradição e sua fala poética sejam desrespeitados e irremediavelmente perdidos.
(publicado no jornal cultural "Conhece-te a ti mesmo")