Roseane 14/03/2020
Cartas para a minha mãe
Ledo engano quem pega o livro e diz: é só mais um romance.
Toda a minha subjetividade de mulher negra foi sacolejada.
A história é situada em Cuba e é uma coleção de cartas que uma menina preta escreve para sua mãe que está no Orum.
A diáspora negra é algo que mexe comigo, podemos estar com um oceano de distância, mas os nossos atravessamentos são muito semelhantes.
A construção do imaginário do que é ser negro dentro da concepção racista e colonizadora é tão bem sedimentada que ultrapassa fronteiras. O racismo e as suas sequelas não nos dão paz em nenhum lugar do mundo.
É um “manual” muito bem escrito e disseminado. Está na televisão, filmes, nos livros, na professora, no casamento, no melhor “amigo”, no patrão... todo mundo sabe qual é o “lugar de preto” e unem força pra que não saiamos de lá.
Mas Teresa de Cardenas na sua inquietude por não ver personagens negros como protagonista, usa as palavras como ferramenta de liberdade. Não é um livro amargo, é um livro verdadeiro, são palavras e sentimentos que tinham que ser expressados por uma mulher negra. No meio de tanta dor, há muito amor. Amor é a essência preta.
Protagonismo totalmente feminino, o amor de mãe, amor da vizinha, a descoberta do amor pela prima e pela avó, a admiração pela professora... tudo vai se construindo.
O livro começa com um sonho, o sonhar com a mãe é um misto de alegria e tristeza.
A minha mãe foi para o Orum quando eu tinha 16 anos, levei muito tempo pra sonhar com ela, eu acho que eu não conseguia por causa ansiedade, eu já dormia desejando e acordava chorando e frustrada porque não acontecia. Um belo dia rolou, foi lindo, mas foi triste porque acabou.
O colorismo é fruto do racismo. Em um universo onde tudo que é negro é demonizado, ser “menos negro” pode ser uma “benção” e também um meio de oprimir quem não teve a mesma “sorte” (aumentem as aspas, aumentem muito, pesei as palavras, mas acho que vocês vão entender).
Brasil foi colonizado por Portugueses e Cuba por Espanhóis. Lá deve ter ocorrido o mesmo que aqui, uma miscigenação a base de estupro das indígenas e das Africanas traficadas para serem escravizadas. É neste misto de cores resultantes, que o racismo cega. Muitos, só na idade adulta reconhece sua identidade negra. Tornar-se Negro de Neusa Santos Souza é pra mim, o escrito sagrado da descoberta da negritude enquanto identidade, o branqueamento é uma das estratégias racistas para hierarquizar as pessoas.
A personagem lamenta por ser a mais preta e fala de uma amiga de pele clara que tem vergonha do pai retinto. Foi em Cuba, mas acontece em qualquer esquina daqui.
A chance de ter filhos frutos de um relacionamento inter-racial é uma das soluções pensada pela avó retinta, ela quer o melhor para os seus e o melhor é não gerar filhos tão negros assim. A avó sabe o peso da melanina que ela carrega. Vai lá em Neusa Santos, ela fala muito bem sobre isso.
É na infância que começam os apelidos. O primeiro que impactou a personagem foi o de beiçuda.
Lembro que em toda a minha infância meus traços negróides eram usados contra mim. O tamanho da minha bunda, meus lábios carnudos, a largura do meu nariz, meu cabelo crespo, o meu tom de pele, meu tom de voz, tudo que me compunha aos olhos do Outro estava errado. E a personagem que passa isso faz uma reflexão que um dia também já foi minha: Se Deus existe, com certeza esta furioso de ouvir tanta gente criticando sua obra”
Uma família só de mulheres, sem a presença de maridos e pais.
Os saberes tradicionais de matriz Africana através de uma mulher sacerdote, convocada no momento de doença. Ritual sagrado com ervas, flores, matança, transe, charutos... tudo o que for necessário para ajudar Lilita e agradar Obaluaê. O santo foi feito.
O preterimento e violência a mulher negra também é pautado. O abuso sexual a menina preta. A personagem principal encontra um jeito de proteger a sua prima que é criança e acamada por um problema de coluna.
A avó está contaminada por uma amargura que parecia sem fim, mas teve fim.
As constantes agressões a essa neta, a transferência de todo seu ódio a uma criança. bell hooks já falou sobre essa questão, a violência que os pais submetem as crianças. A violência como forma de controle social doméstico e a aceitação da comunidade. Nós crescemos em famílias que naturalizaram a ideia de que a violência é resposta apropriada para lidar com crises.
Então eu refleti, quem nunca ouviu falar de pais que espancaram seus filhos para o seu bem, para que ele estude, pra que não saia de casa, para que não engravide, para ajudar nas tarefas de casa... No contexto histórico racial a criança preta não foi poupada pelo branco escravizador. N
o Congo por exemplo se decapitava mãos e pés de crianças como forma de castigo, o estupro a menina negra, o espancamento do menino negro eram estratégias de sadismo e controle.
Livro forte, impactante, verdadeiro.
Uma história de amor no meio de muita dor. Porque sim, o amor é essência Africana.
Teresa Cárdenas Angulo é uma escritora, roteirista, atriz, bailarina e ativista social cubana. Sua motivação para tornar-se escritora veio ainda na infância, quando começou a ler e ficou frustrada com a ausência de personagens negras nos livros infantis.