Iami 02/01/2013
O Centauro no Jardim: um resumo
O romance O centauro no jardim, de Moacyr Scliar, mistura em sua narrativa provocante, elementos que a tornam indefinível. Nela, se combinam as características de narrativas tipicamente fantásticas e fabulosas, como a presença perturbadora e talvez imaginária do cavalo alado: “Volta e meia acordo à noite com a sensação de ter ouvido um ruído estranho (o ruflar das asas do cavalo alado?)” (Scliar, 2011:9) que sempre agita as certezas do personagem principal.
Além disso, há marcações típicas de diários, como por exemplo, o inicio dos capítulos que sempre vem com as datas e os nomes dos lugares nos quais Guedali viveu suas experiências mais marcantes: (“São Paulo: restaurante tunisino Jardim das Delícias 21 de setembro de 1973”; “Casa no bairro de Teresópolis, Porto Alegre 1947 a 1953; “Circo 1953 a 1954”). Além do mais, o narrador personagem ao longo da história, insere seus pensamentos ou imagina outras possibilidades de ocorrência dos acontecimentos por ele relatados. Observe o exemplo a seguir:
Quando anoitece, saímos. Coloco o corpo de Zeca Fagundes sobre o lombo,
(estivesse vivo, o estancieiro sem dúvida me empregaria como peão; eu seria soberbo, no amarrar uma tropilha; imbatível, nas carreiras de cancha reta; e, quando estivesse velho, poderia puxar uma charrete – e não precisaria de ninguém às rédeas: boleias vazias, tais como as das carruagens fantasmas que deslizam, silenciosas, em meio ao nevoeiro) (Scliar, 2011:76)
Percebemos nesse trecho a imaginação de Guedali em ação, inventando outra possibilidade, dando ao romance aquele ar confidencial de diário, oscilando entre os acontecimentos e a imaginação. Essas marcas traduzem muito bem legitimação da pluralidade apresentada por Antonio Candido, pois percebemos no romance de Moacyr Scliar “textos feitos com a justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte. (...)” (Candido, 1987:209).
O narrador em O centauro no jardim parece manter um contato pessoal e íntimo com seu receptor. Parece que ao ler, o leitor se depara com uma espécie de diário, onde alguém escreve os momentos mais importantes de sua vida, seus medos, seus anseios, suas idealizações. E isso ocorre porque, de acordo com Antonio Candido,
o escritor atual (...) deseja apagar as distâncias sociais, identificando-se com a matéria popular. Por isso usa a primeira pessoa como recurso para confundir autor e personagem, adotando uma espécie de discurso direto permanente e desconvencionalizado. (Candido, 1987:213)
O narrador quebra a distância com o receptor, fazendo-o se sentir parte da construção narrativa. Faz parecer que ele [narrador] e nós [receptores] estamos sentados à mesa de um bar ou restaurante, conversando sobre assuntos triviais, quando ele decide contar sobre sua própria vida. Sua função parece essencialmente modalizante, visto que ao longo da leitura, sentimos a presença de sentimentos e emoções do narrador-personagem, como no exemplo a seguir:
"Vagueio pelo campo tocando violino. A melodia se mistura ao sussurro do vento, ao canto dos pássaros, ao chiar das cigarras; é uma coisa tão bonita, que meus olhos se enchem de lágrimas; esqueço de tudo, esqueço que tenho patas e cauda, sou um violinista, um artista". (Scliar, 2011:31-32)
Percebemos neste trecho que o narrador passa seus sentimentos àquilo que está contando, característica típica do tipo homodiegético, cuja perspectiva passa pelo ponto de vista do próprio. Nesse modelo de narrativa, há a “combinação típica das autobiografias, confissões e relatos nos quais o narrador conta sua vida retrospectivamente” (Reuter, 2002). E é exatamente o que ocorre no romance em questão, pois se percebermos, o início da história se dá numa espécie de final, e nos capítulos seguintes, Guedali começará a contar sua história, inclusive seu nascimento, o que parece absurdo.
Outro ponto importante, remetendo à citação de Antonio Candido feita agora pouco, há uma “confusão” entre autor e personagem ou narrador e personagem, pois no romance, por vezes o narrador homodiegético se subtrai de sua posição, adotando uma espécie de consciência universal ou coletiva, que pode ser, por exemplo, quando o Guedali imagina algo que irão imaginar dele, tal como ocorre no seguinte episódio:
No entanto, meu pai sabe, um dia seu filho Guedali sentirá tesão por mulher. Tesão irresistível. E o que acontecerá então? Meu pai não quer nem pensar no que poderá ocorrer numa noite de setembro.
Véspera do décimo segundo aniversário de Guedali.
Noite muito quente. Mesmo para setembro. Calor insuportável.
Nessa noite o rapaz não conseguirá dormir. Inquieto, o rosto afogueado, rolará de um lado para outro no colchão de palha. (É a tesão: é o grande pênis ereto, latejante. Que fazer? (...). Não se agüentando mais, Guedali sairá porta afora para o campo. Se esfregará em árvores, se atirará ao riacho, nada o acalmará. (Scliar, 201136)
É como se Guedali soubesse dos medos de seu pai, ou até mesmo, que compartilhasse deles de uma maneira inconsciente. Como se o medo que habita o (in)consciente de Leão Tartakovsky, também habitasse o inconsciente do jovem centauro.
Enfim, O Centauro no jardim é um romance magistralmente escrito, causando em seus leitores, talvez, um primeiro impacto, mas que, posteriormente, nos leva a um passeio inesquecível e maravilhoso. Embora o romance seja belíssimo, ele pertence a uma safra sem parâmetros de julgamentos, no qual “não se cogita mais (...) produzir (nem de usar como categorias) a Beleza, a Graça, a Emoção, a Simetria, a Harmonia. O que vale é o Impacto, produzido pela Habilidade ou a Força.” (Candido, 1987:214). Nele o que encontramos é a essência perturbadora do mundo contemporâneo: a sensação de deslocamento e a identidade em construção permanente.
Gostaria de citar um trecho do romance de Moacyr Scliar: “Como um cavalo alado, prestes a alçar vôo, rumo à montanha do riso eterno, o seio de Abraão. Como um cavalo, na ponta dos cascos, pronto para galopar pelo pampa. Como um centauro no jardim, pronto a pular o muro, em busca da liberdade.” (Scliar, 2011:218)
O trecho escolhido, para mim, além de ser belíssimo, produz um efeito de síntese da obra. Se fosse proposto um trecho que resumisse o romance em questão, seria o citado acima. A presença do cavalo alado, do vôo, da liberdade, forma uma imagem grandiosa e infinita, o que de certa maneira acontece no romance. Ele não termina no sentido restrito da palavra, não tem um fim fechadinho, não apresenta uma solução. O romance termina mostrando para os leitores que todos convivem com a sensação de uma instabilidade de pertencimento e de identidade, onde nós todos, às vezes, nos sentimos partidos ou incompletos, com uma ânsia de algo mais. Independentes de quem somos, ou a que círculos de amizades pertençamos, ou em que meio familiar convivamos, ou a que costumes ou regras nos apegamos... Não importa. A sensação de quebrar as regras, abandonar os costumes, trapacear o cotidiano soam aos nossos ouvidos como um canto sedutor; como um ruflar de asas, inaudível, mas existente e insistente, soprando de nós aquilo que nos esforçamos por manter sempre nos mesmos lugares. Esse ruflar de asas convida-nos para pular o muro e sair do lugar que conhecemos. Aventurar-nos no desconhecido, na desordem, na incerteza, pois é somente quando nos aventuramos no desconhecido é que nos sentimos completos como seres humanos.