Mayana26 27/03/2024
Quem começa, não quer parar até saber onde vai levar
A citação que me convenceu a ler esse livro, quando assisti ao filme:
?Afirmo que devo ir! Retruquei, possuída por uma espécie de paixão. Acha que posso ficar para me tornar invisível ao senhor? Acha que sou um autômato? Uma máquina sem sentimentos? E posso tolerar ver meu pedaço de pão arrancado dos meus lábios, e meu gole d'água atirado fora do meu copo?
Acha que porque sou pobre, obscura, simplória e pequena não tenho alma nem coração? Está enganado! Tenho uma alma, tanto quanto o senhor, e um coração igualmente pleno.
E se Deus me tivesse dado alguma beleza e bastante riqueza, eu teria tornado tão difícil para o senhor me deixar quanto é para mim, agora, deixá-lo. Não estou dizendo estas palavras com o filtro dos costumes, convenções, nem mesmo da carne mortal... é o meu espírito que se dirige ao seu espírito; como se ambos tivéssemos passado pela sepultura e estivéssemos aos pés de Deus, como iguais... que é o que somos!?
Charlotte Brontë (1816-1855), está ao lado das irmãs Anne e Emily como um dos grandes nomes da literatura inglesa, estreando com poemas de sucesso de público e crítica estrondosos sob pseudônimos que não identificavam seu gênero (Currer, Acton e Ellis Bell, respectivamente), o que dificultava que suas obras fossem recusadas pelas editoras. Além de Jane Eyre (1847), também escreveu os romances Shirley (1849), Villette (1853).
Sua biografia - delineada pela perda da mãe, das quatro irmãs e do único irmão, pelos anos em um internato para meninas em que sofreu maus-tratos e privações, pela dedicação à licenciatura como professora de um pensionato belga, e pela autoria de manuscritos primorosos - foi registrada pela notável Elizabeth Gaskell (North and South, 1854), quem conheceu em Londres (1851), sob o título de The Life of Charlotte Brontë (1857).
Quanto ao objeto de interesse desta resenha, o romance autobiográfico de Jane Eyre, publicado na Inglaterra vitoriana de 1857, trata-se de um calhamaço, de fato, no entanto, isso de forma alguma impediu o deleite que foi esta leitura para mim.
A narrativa da protagonista, escrita em primeira pessoa, apresenta-se de maneira tão instigante que os longos capítulos não são exaustivos, mas expressam uma história provocativa à curiosidade sobre como os eventos se sucederão.
A infância de Jane apresenta elementos que se assemelham à mesma fase da vida de Charlotte. Comoventes, os 10 primeiros capítulos retratam o destrato sofrido pela pequena órfã pelos únicos
parentes que possui, pelos empregados da casa em que vive
(exceto pela criada Bessie, personagem que homenageia sua babá Nancy, como ocorre com Nelly em Morro dos Ventos Uivantes), e pela privação de seu único refúgio, os livros.
Tão impiedosos eram os olhares e castigos que lhe dispensavam, tão inferior ela era à sra. Reed, sua tia, que sempre a via como uma criatura desagradável, mais uma boca a ser alimentada, um estorvo a ser suportado por meras responsabilidades familiares - uma representação da visão sobre as crianças naquele século, e ainda nos dias de hoje, com frequência.
Na primeira oportunidade de se ver livre da sobrinha, a sra. Reed envia nossa heroína a uma instituição de ensino não muito diferente da que as irmãs Brontë também conheceram quando pequenas. Sob a direção do hipócrita Mr. Brocklehurst, a Lowood Institution constantemente confundia fé, educação, disciplina, decência e modéstia com humilhações, castigos físicos, privação de condições sadias e subnutrição. Ainda que houvesse sofrimento, narrado intimamente, havia alívio em duas figuras: Helen Burns e Ms. Temple, cujos bravos corações e doces espíritos aqueceram aos dias gélidos e sombrios de Eyre, capturando também o afeto de quem lê, inevitavelmente.
Uma reforma na Lowood Institution devolve luz à vida daquelas garotas, e Jane cresce em estatura (pouco) e conhecimento (abundantemente), chegando aos 18 anos e passando de uma aprendiz exemplar à posição de professora. O desejo por crescimento, inerente à mente aguçada, à leva buscar por novos ares. Como tutora de uma garotinha francesa em Thornfield Hall, medieval e imponente mansão inglesa permeada por mistérios, sussurros e vultos, Jane Eyre começa a nova fase de sua vida, cujas experiências, incluindo conhecer seu patrão, o Mr. Rochester, influenciam decisivamente seus sentimentos e escrevem sua trajetória.
A desigualdade de gênero, classe, posição e geração se impõe diante de Eyre e Rochester; ainda assim, nasce uma amizade entre o patrão e a empregada, sobre a fina corda prestes a romper em que equilibram-se diferenças, limites e segredos. E o comentário gótico de Brontë agrega à discussão atemporal sobre a complexidade destes aspectos, conservando-se pertinente.
Precisamente com a revelação desses segredos, Jane é testada, e não apenas uma vez. Assim, perante o sentimento de solidão e perda, constantemente à espreita, a dor da escolha é insuportável e inevitável. Entregar-se ou não, perder a razão ou manter-se fiel aos princípios de sua criação cristã, ceder à desesperança ou arriscar a própria integridade: cada resposta, sim ou não, tem sua recompensa. Diante da fuga de cenários que se desenham reside toda a angústia humana, pois nunca sabemos o que há de vir. A escolha certa retumba como uma voz no coração e Jane Eyre correu para atender o chamado.