Mayara.Neris 01/09/2014Em meio ao caos da violência, Maurício Hora se encontrou na fotografiaEu morei na Brasilândia até meus 11 anos. E mesmo criança já via muita gente mentir dizendo que era da Freguesia do Ó pra não sofrer preconceito por morar num bairro periférico. É muito mais fácil mentir do que defender.
Também vi meu irmão sendo algemado e levado na viatura com a minha mãe. O que eles fizeram? Pararam à noite em frente a casa da minha vó pra me buscar. Os policiais só ficaram menos agressivos quando me viram no portão soluçando de tanto chorar. Alguns anos depois, minha mãe me contou que bateram muito no meu irmão naquela madrugada, e teriam batido mais se ela não tivesse ido junto.
Uma vez, durante a festa de aniversário da minha tia, ouvimos um tiro. Todo mundo saiu correndo, abaixou. Logo depois alguém veio com a notícia. O Ney – cara gente boa e meu vizinho – tinha levado um tiro, bala perdida. O aniversário se transformou num pré-velório. Foi a noite mais triste da minha vida.
Morro da Favela, publicada em 2011 pela extinta Barba Negra/Leya, trata exatamente desses assuntos: preconceito de quem só vê de fora, abuso de poder e violência. Maurício Hora, fotógrafo autodidata, cresceu nesse ciclo e nem por isso deixou de acreditar em algo maior e melhor, sem precisar sair ou renegar as raízes.
“O Morro da Providência, localizado próximo a Central do Brasil, no Rio de Janeiro, era conhecido como Morro da Favela. Durante a Guerra de Canudos, os soldados do governo usavam um morro, popularmente conhecido como Morro da Favela, para atacar o vilarejo de Antônio Conselheiro. A favela era um arbusto comum na caatinga baiana. Como recompensa pelo sucesso contra canudos, os soldados veteranos chegaram ao Rio de Janeiro para receber as casas prometidas pelo governo. Mas, devido a atrasos burocráticos, as moradias não eram entregues. Então, em 1897, os soldados ocuparam o morro e o apelidaram de Morro da Favela. Com o passar dos anos, o termo favela ganhou um novo significado, passou a designar todos os agrupamentos desordenados do Rio de Janeiro, depois os do Brasil, e já começa a ser conhecido em todo mundo.”
Na graphic novel, a história de Maurício e do Morro da Favela se completam. Através da fotografia, ele se incumbiu de mostrar um lado dificilmente retratado nos noticiários e mídias de praxe: o lado humano, o lado “aqui tem gente de verdade”. E tudo isso teve que acontecer justo na primeira favela brasileira.
Munido de curiosidade, Maurício teve muitas oportunidades de traficar ou praticar qualquer outra ilegalidade. Um dos exemplos morava com ele, seu pai foi pioneiro no tráfico de drogas nos anos 1950. Entretanto, ele resolveu seguir pela vertente contrária de seu herói após esbarrar numa Pentax enquanto trabalhava como ourives na adolescência. Sem técnica alguma, ele mal sabia que seus registros se tornariam históricos posteriormente.
Nos traços preto e branco do quadrinista André Diniz, responsável pelo roteiro também, acompanhar os passos de um favelado – ele passou a se orgulhar da definição – desde a infância com uma família desestruturada, até seu reconhecimento com direito a exposição até na França é efetivo na desconstrução do possível preconceito de uma pessoa que pega Morro da Favela pra ler.
“Quem mora aqui não corre o risco de ser assaltado pelo traficante. O risco é quando a polícia chega pra revistar. Sempre de forma intimidadora, até mesmo violenta. Agindo dessa forma, a polícia vira o inimigo. E é assim a trajetória da polícia. Sobe e mata um trabalhador desarmado. Aí diz que ele é bandido pra justificar. Mata duas vezes: mata o corpo e mata a honra.”
A favela tem múltiplas facetas, a maioria invisível perante a sociedade. E com sua lente, o carioca Maurício Hora contribuiu significantemente para a desconstrução do preconceito com os “agrupamentos irregulares”. Se não fosse o talento e a vontade de um lugar melhor sem abandonar suas raízes, ele não teria dado conta dos desdobramentos que sua vida deu até chegar onde chegou.
site:
http://vieramente.com.br/morro-da-favela-andre-diniz-resenha/