Thales 14/02/2021
O memorial não é só do convento, é de Portugal inteiro
(Contém pequenas revelações do enredo. Não chegam a ser spoilers, mas há quem prefira não saber)
"Memorial do convento" é a odisseia portuguesa por excelência. Pelas bandas de lá o livro é considerado não só a magnum opus do Saramago como um definidor da cultura do país. A Folha de São Paulo o elenca entre os cem maiores romances do século XX. Provavelmente foi o maior responsável pelo nobel que o portuga recebeu nos anos 90, o único até hoje da língua portuguesa, essa língua tão subestimada em termos literários ao redor do globo. Tá ruim?
E como toda boa odisseia, essa aqui tem lá suas questões. Mas vamo por partes.
Os principais protagonistas são Baltasar Sete-Sóis e Blimunda de Jesus, mais tarde batizada Sete-Luas. Ele um zé bunda que perdeu a mão esquerda na guerra e usa ora um gancho ora algo como um estilete no lugar, ela uma mística que em jejum pode ver o que está escondido tanto fisicamente como no íntimo das pessoas. Ambos se conhecem no julgamento que condenou ao exílio por bruxaria a mãe de Blimunda, após a jovem receber um sinal meio etéreo. No mesmo dia ela o acolheu em sua casa, ele foi batizado com o sangue dela - if you know what i mean - e a partir disso nunca mais se separaram.
Quando do encontro, Blimunda estava acompanhada de um amigo da família, padre Bartolomeu Lourenço (figura histórica, realmente existiu), religioso nascido no Brasil fascinado pelo campo das invenções. Dotado de uma certa paranoia para com o Santo Ofício, mantém em segredo a engenhoca de sua vida: a passarola, instrumento em forma de ave gigante que por uma engenhosa e mística engrenagem poderia voar.
Engenhoca que era veladamente patrocinada pelo rei de Portugal, D. João V, que no seu delírio de grandeza enxergava na passarola uma grande oportunidade para conquistar objetivos e entrar pra história. Dotado de uma megalomania e nenhum senso de realidade, ele é enrolado por um bispo quando promete construir um convento gigantesco em Mafra caso, a partir da bênção do religioso, sua mulher consiga engravidar. Como o bispo de bobo não tinha nada, já sabia que a rainha estava grávida de antemão.
E é em torno tanto do convento como da passarola que essas histórias principais se sobrepõem. Temos então uma trama enrolada, que dura um longo período de tempo, cheia de drama, críticas e reviravoltas, além de cenas chocantes.
E o grande x da questão de "Memorial" é que mesmo que a narrativa siga direitinho a linha temporal, ela é contada de forma nadica ordeira. Saramago não só flutua entre os "núcleos" como "pausa" para fazer várias digressões, acompanhar acontecimentos paralelos, causos do folclore português e etc.. Além disso ele exagera na escrita profundamente subjetiva e as vezes poética. Trocando em miúdos: ele não conta a história; ele pincela situações, divaga, vai descrevendo as paisagens e as movimentações, reflete sobre a confusa formação da nação portuguesa, navega pelas contradições de seus personagens... e assim todo esse fio vai sendo puxado. Por isso, ao mesmo tempo em que ele demonstra um domínio exuberante da língua e das técnicas narrativas - e, gente, é coisa de louco a proeza desse homem - ele torna a leitura extremamente arrastada.
Daí ou você é um monge tibetano e consegue manter um foco extremo por um bom tempo ou só realiza que vai entender no máximo 70% da coisa toda e segue a vida. Se não a leitura simplesmente não flui.
Mas afinal, como eu já disse, quando lemos "Memorial do convento" estamos diante de uma odisseia. E odisseia é isso, é desafiadora, é truculenta, é irregular, tem momentos de glória e momentos de desespero. E esse é o mix de sentimenos que a obra desperta em nós. Quando concluímos sua leitura temos aquela bela sensação de "ufa, que desafio, mas superei!". É muito recompensador.
Cenas como a morte do trabalhador no carregamento do pedregulho, a breguíssima e rocambolesca procissão de Corpus Christi ou o primeiro vôo da passarola são daquelas que vão marcar nossa vida pra sempre. É o tipo de lembrança pela qual vale cada dor de cabeça pra concluir o livro, sabe?
E o final... eletrizante, conturbado, de partir o coração. O último capítulo é completamente dilacerante, ele encerra perfeitamente o ciclo iniciado no dia em que o casal se encontrou, mas de uma forma bem saramaguiana. Que mulherão é Blimunda, namoral!
Em suma, "Memorial do Convento" é uma ficção histórica das mais geniais já escritas, e como toda obra desse quilate exige muito, mas muito mesmo, do leitor. Exige paciência, muita atenção, e até um certo nível de domínio da língua e de cultura popular. Acredito que um leitor jovem e/ou inexperiente teria muita dificuldade. Mas obviamente não posso deixar de recomendar, Saramago é daqueles autores de quem temos que ler até os rabiscos em guardanapo.
Para finalizar, acho importante registrar porque não dei cinco estrelas para o livro. Primeiro pelo fato já destacado de ser uma leitura arrastada; eu consigo reconhecer sua qualidade ao mesmo tempo que critico o quão desnecessariamente prolixo e confuso Saramago foi. Segundo que a edição é bem pobre, e isso me decepcionou. Ótima revisão - o mínimo em se tratando de um texto originalmente já em português -, mas não tem uma nota de rodapé, introdução, posfácio, nada. Como que me editam uma obra dessa envergadura, que trata de vários temas complexos, e o treco vem com zero fortuna crítica? Vacilo da Companhia das Letras.