spoiler visualizarde Paula 12/04/2023
Na alma as vinhas da ira diluem e espalham com ímpeto
Eu tenho tanta coisa para falar sobre esse livro e ao mesmo tempo é tão difícil colocar em palavras tudo o que senti e percebi durante essa experiência, que pretendo deixar aqui esta resenha para retornar sempre que for preciso. Mas, adianto que foi um dos melhores livros que eu já li e provavelmente vai ser difícil encontrar algo semelhante (pretendo ler Grande Sertão Veredas e Torto Arado em breve, porque acredito que sejam semelhantes).
Comecei a ler e não queria parar mais, no entanto, tenho que trabalhar, estudar e viver, mas abriria mão de tudo para terminar o mais rápido possível, embora isso tenha cheiro de ressaca iminente. Mesmo assim, consegui terminar em 5 dias e agora gostaria de esquecer tudo e reler, de tão bom que a narrativa envolvente e extremamente real é.
Não vou falar sobre a sinopse, até porque para alguém ler uma resenha com spoiler, isso significa que você quer saber mais sobre o que é apresentado no resumo. Tudo começa com Tom voltando para casa, após passar 4 anos na prisão por homicídio. Ele se apresenta de um jeito rude e o leitor pode pré-julgar como se ele fosse um criminoso inescrupuloso, o que se prova extremamente errado no decorrer da história. Ele encontra Casy, o ex-pregador da região, que conversa sobre questões da existência de Deus e como as pessoas dali são simples, além do que de fato importa. Deixo meu adendo aqui sobre o que acho: Casy é um personagem excepcional e brilhante, todas as suas falas trazem um quê filosófico que nos faz pensar. Ele é pelo povo, para ele o controle religioso, o pecado, enfim, são ferramentas para manter as pessoas calmas. Casy é apaixonado e comprometido, respeitador, também possui um arco admirável e sou suspeita, mas concordo com muitas coisas que ele pensou durante sua vida, principalmente considerando que já fui uma pessoa religiosa que se desencantou completamente quando vi o poder exercido sobre as pessoas mais simples em nome dos poderosos e isso é a coisa mais cruel e errada de agir com o próximo.
A família Joad perdeu tudo e por isso estava indo embora, depois de receber um panfleto sobre as maravilhas da Califórnia. Para um leitor do século XXI é claro que isso era uma forma de se livrar dos meeiros, que não poderiam lutar pelas próprias terras, adquiridas por hipotecas e empréstimos pelos bancos. porque uma luta em união é uma força poderosa, maior que o poder da política, economia e polícia. Com a falsa esperança, os cidadãos de Oklahoma saíram pela 66 route para Bakersfield, a terra de pêssegos, uvas e laranjas. Nada dá certo, Tom está fugindo do estado e pode ser preso por descumprir sua liberdade provisória, o avô e avó morrem e não tem dinheiro para pagar pelo enterro, as pessoas que possuem dinheiro precisam enganar e tirar tudo das que não tem nada para garantir sua soberania (aqui falo de todos os capítulos que o autor conta a vida das pessoas de modo geral, sem falar nos personagens que guiam o êxodo americano), além do abandono parental - sim Connie, você é um babaca! -, a luta contra lembranças do passado - a questão do pai e Noah e a culpa que o pai e o irmão dele, John, carregam sobre suas escolhas e erros, enfim, o que faz os personagens serem profundos, reais, marcados pelos erros, culpas e pela miséria.
A história nada tem de sonho americano, muito pelo contrário, tem um quê de comunismo - o que eu sinceramente não concordo, porque a luta dos trabalhadores não tem necessariamente a ver com a extrema esquerda, existem formas políticas moderadas dentro deste espectro que se encaixa melhor. O autor faz duras criticas a estrutura do Estado da época, onde a polícia exerce a função de culpar, julgar, condenar e executar a sentença de acordo com a propina recebida pelos grandes proprietários, que não se importam se as crianças morrem de fome, se as pessoas precisam ser enterradas como indigentes, sem um teto ou saneamento básico, o que importava era pagar centavos por 12 horas de trabalho e ficar cada vez mais ricos e se para evitar que a força popular tirasse algo deles, a polícia estava presente para prender, matar, queimar, destruir tudo, puro abuso de poder, sem se importar que aqueles miseráveis eram pessoas.
Esse livro é triste, pesado e muito factual, por isso, sinto um amor muito grande pela história e um desprezo enorme por como nós, proletariado, somos tratados pelas estruturas de poder e simplesmente, por não concordar com toda a maldade que temos que passar somos chamados de "vermelhos" e condenados. Bom seria que essa história tivesse ficado em 1939, quando foi escrito, mas isso está acontecendo no Brasil de 2021! As pessoas estão desempregadas, morrendo de fome e numa pandemia, a solução é se tornar o próprio chefe, um microempreendedor individual e trabalhar até 24 horas seguidas em aplicativos e no fim do dia só ter conseguido pagar a gasolina. Só não vê quem não quer. Somos os mesmos meeiros de Oklahoma com uma terra prometida à frente, que não existe e a elite econômica do país crescendo, o que os países mais ricos do mundo não conseguiram no meio de uma das piores pandemias da humanidade. A indignação do autor é a mesma que se reflete nos personagens e deveria refletir em nós nos dias de hoje. A diferença é que temos acesso à informação nos dias de hoje e por isso podemos, devemos, usar o nosso poder de decisão, assim como sermos cidadãos políticos e fazer a diferença, nós podemos mudar nosso futuro, mesmo que nos façam acreditar que não.
A personagem da mãe é forte, empoderada e incrível dentro de sua simplicidade, adoro isso porque nos livros da época era difícil uma representação feminina de tamanha força. Ela era o esteio, quem deixava a família unida, quem tomava as decisões mais sensatas e não desistia de lutar, mesmo quando a fome consumia, mesmo quando o neto nasceu morto, mesmo quando os filhos adultos foram embora um por um. Sem ela, com certeza eles teriam se entregado muito antes e morrido, provavelmente. Isso é uma revolução literária, uma luta que ainda temos em nossos dias.
Tudo é muito difícil e triste, mesmo quando as coisas parecem estar dando certo, o que na realidade não estão, acho muito difícil passar por toda a história e não ser tocado de alguma forma. As pessoas terem que fugir da própria casa é de uma crueldade sem tamanho, além das maldades contra os pequenos agricultores, pessoas querendo se dar bem umas sobre as outras, enquanto os miseráveis se ajudam, e mesmo assim a visão religiosa ou maniqueísta do mundo nunca se concretizam, não tem salvação, não acontecem coisas boas, é caminhar um dia de cada vez, um passo atrás do outro, como a vida é. Normalmente temos uma tendência a ser Rosasharn, pensando que tudo é contra si próprio, de nos desestabilizarmos por não estar onde queríamos, a questão é que o universo não conspira ao nosso favor ou contra nós, basta verificar as lições de Casy.
O final é de explodir a cabeça, com sua simplicidade que mostra o ciclo da vida, o bebê morto deu chance a um pai sobreviver, numa cena impactante e muito honesta, eu não tenho palavras para descrever, são muitas sensações: revolta, porque em determinado momento o autor promete que 12 pessoas seriam recompensadas por sua luta e salvas por pessoas ricas, o que não acontece com os personagens principais; a esperança com o fim do ciclo de Tom e o vazio que a falta de um desfecho mais amplo causou.
Eu adorei a oportunidade de ler essa obra prima e todas as emoções carregadas que ela gerou. Recomendo que todas as pessoas leiam, reflitam e mudem suas atitudes, pensem mais no próximo e como as nossas decisões impactam o mundo.
"Nos olhos dos homens reflete-se o fracasso. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira diluem-se e espraiam-se com ímpeto, amadurecem com ímpeto para a vindima."