Estêvão 07/01/2010As palavras "cavaleiro" e "cavalheiro" possuem algo em comum além da sonoridade aproximada: ambas passam a ideia de formalismo e um certo equilíbrio emocional. Levando essas características ao extremo, o escritor cubano, radicado na Itália, Italo Calvino, em seu romance O Cavaleiro Inexistente (1959), obra que integra à série Os nossos antepassados, cria um personagem que se configura como uma metáfora a ética nas relações humanas.
Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez. É com essa frase que nosso cavaleiro inexistente se apresenta a Carlos Magno na primeira página do romance. Agilulfo integra o exército comandado por Carlos Magno e, possui uma excentricidade em relação a todos os outros cavaleiros desse bando: não existe. Talvez por esse motivo características como lealdade inquestionável, destreza e habilidades no manejo de armas, além de uma gana de competências e um caráter inquestionável são atribuídas a ele. Em algumas passagens Italo refere-se à Agilulfo como irretocável, por dentro e por fora – uma referência a sua moral e a sua armadura sempre muito limpa -, “sem uma mancha que a suje”, igual a sua honra.
A aventura de nosso cavaleiro inexistente é narrada por uma freira em um convento que é obrigada a contar uma história para pagar uma penitência. Portanto, o narrador é onipresente e onisciente em sua terceira pessoa. E, tal qual um Dom Quixote, Agilulfo tem uma missão: defender sua honra perante uma acusação de não merecer o título de cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez, além das obrigações típicas de um cavaleiro, defender donzelas em perigo. Para provar sua honra ele, parte em companhia de seu escudeiro, um idiota da vila (Sancho Pança?) em busca da virgem que salvou anos atrás e que, por tê-la protegido, conquistou o título que ostenta em seu nome.
Por ser uma estória contada por uma freira, temos dois planos narrativos: o da freira que conta como se processa o livro em sua cabeça e a trama de Agilulfo que ela cria. Portanto, podemos dizer que o plano da freira se situa no plano real e o de Agilulfo o plano mágico, metafórico ou alegórico e é aí que reside o ponto máximo do romance. Mas para isso é necessário mais informações sobre o seu enredo.
Além do cavaleiro inexistente, no acampamento dos cavaleiros carolíngios existia uma amazona chamada Bradamante e que era cobiçada por todos os outros cavaleiros e dentre eles o jovem Rambaldo, cavaleiro que se junta ao grupo de Carlos Magno com o intuito de vingar a morte do pai, que foi morto por um dos inimigos dos cavaleiros. Rambaldo escolhe Agilulfo como mestre, sem saber que ele era pretendido por Bramante e sua paixão por homens sérios, sóbrios e equilibrados emocionalmente, características que Agilulfo tinha e que era realçada por várias outras. Formado o triângulo amoroso e após a partida do cavaleiro inexistente em defesa de sua, até então, irretocável honra, Bradamante parte atrás dele e é seguida por Rambaldo.
O interessante nesse amor que Bradamente declara é a ironia que a narradora deixa no ar, gerando uma reflexão sobre o sentido de amar. O conceito de amor defendido pela amazona se aproxima muito da ideia platônica de amor, a personagem se encanta por valores e moral firmes e consolidadas, algo que só consegue encontrar em Agilulfo, cavaleiro que, não existe. Portanto uma pergunta fica no ar: o que é o amor?
Após um imbróglio que envolve parentes, sexo, incesto e a honra de um cavaleiro, Agilulfo resolve se desfazer da armadura e sumir para sempre, sem saber que era inocente. A simbologia remete ao valor da honra e da ética dos cavaleiros é como se quisesse afirmar que uma única insinuação jogasse toda ética por água abaixo e que tudo aquilo que existia único em sua imponência moral não valesse de nada diante de uma suspeita.
Vendo o seu amado cavaleiro “morrer” Bradamante resolve se isolar num convento (!). Sim, a mesma que nos conta a história de Agilulfo! Essa informação dá um reverso em toda a obra e, de forma magnífica, realiza as misturas entre os dois planos até então isolados – o real e o mágico. A junção deles é a tônica da narrativa que, além quebrar toda a lógica até então conduzida põe ambas no mesmo tempo e espaço culminando com a reflexão: o que é mágico e real nessa narrativa? Pessoas como Agilulfo só existem na ficção? E o amor? A ética é éter nas relações humanas?
A comparação com Dom Quixote é inevitável não só pela temática que tem como personagens cavaleiros, mas também pela mistura de magia e realidade, lucidez e loucura que, aplicadas em nossas vidas nos instigam a ver certos conceitos aos quais estamos submetidos e o quão platônico eles se tornam quando submetidos à realidade.