spoiler visualizarLeandro.Sousa 01/03/2017
O ANO DA MORTE
O enredo inicia-se com o retorno de Ricardo Reis para Lisboa depois de ter passado dezesseis anos no Brasil. Ele instala-se no Hotel Bragança, na Rua do Alecrim, onde conhece a arrumadeira Lídia, o que de imediato lhe chama a atenção, pelo fato de ser o mesmo nome de uma das musas de suas Odes. Aos poucos, o médico envolve-se com a arrumadeira e os dois começam a ter um romance às escondidas devido às suas diferenças de classe.
No Hotel Bragança, Reis, além de fazer uma amizade quase forçada com o gerente Salvador, também conhece a jovem Marcenda, por quem se enamora. A jovem tem um problema no braço e vem a Lisboa com o pai em busca de tratamento. No desenrolar da história eles se beijam, mas não passa disto, restando por algum tempo, uma troca de correspondências.
Sem planos definidos, Ricardo Reis é uma personagem solitária que vai observando e apreendendo a realidade da cidade, do país e do mundo, sem se envolver diretamente. À medida que o enredo avança, o leitor pode acompanhar os fatos históricos da época por meio das leituras que a personagem Ricardo Reis faz nos jornais diariamente, de um lado, a ditadura fascista de Salazar; de outro, a gestação da Segunda Guerra Mundial, a Frente Popular Francesa, a Guerra Civil espanhola, a expansão nazista na Europa. Fatos que se desencadearam em 1936, ano em que se passa a narrativa.
Algo que chama atenção na obra é o fato de que o espectro de Fernando Pessoa faz visitas a Ricardo Reis e o alerta, afirmando que vai poder vir visita-lo durante nove meses, que este, assim como se tem um prazo para nascer, seria o prazo para se desligar por completo, sendo que este período seria o suficiente para que todos o esquecessem.
A vinda do médico a Portugal também desperta suspeitas a polícia da cidade, que o intima, o interroga e fica a vigiá-lo de perto, por meio de Victor, que algumas vezes circula próximo ao lar em que Ricardo se instalara depois de sair do Hotel Bragança.
Neste novo lar, continua a receber as visitas de Lídia, sob os olhares e comentários das vizinhas bisbilhoteiras. A arrumadeira aparece em seus dias de folga, esta, sem esperança de um dia poder ter realmente uma vida pública com o médico, às vezes pensa em abandoná-lo de vez.
E a vida do médico segue assim, lendo as notícias diariamente, recebendo as visitas da arrumadeira e amante em suas folgas e as visitas do espectro de Fernando Pessoa com quem trava grandes diálogos. A rotina de Reis se altera um pouco quando este consegue um emprego temporário substituindo um médico cardiologista que se afastara. Mas o trabalho dura pouco tempo.
Ao fim da narrativa o espectro de Fernando Pessoa vem buscar Ricardo Reis, o que revela um desfecho que conduz a uma curiosidade: Fernando Pessoa já estava morto na ficção enquanto Ricardo Reis vivia, já na realidade, Fernando Pessoa existiu enquanto que Ricardo Reis, não.
Numa escrita peculiar, Saramago condiciona um ritmo a narrativa que exige a adequação do leitor, num constante diálogo com fatos históricos que fizeram parte da história de Portugal. Além de dialogar também com as Odes do heterônimo Ricardo Reis, inclusive, introduzindo no enredo, alguém com o mesmo nome de uma de suas musas, Lídia, com quem o médico poeta vivia o momento, na impossibilidade de projetar um futuro com a arrumadeira, devido a diferença social que existia entre eles.
Soma–se o fato de Fernando Pessoa estar presente na obra abrindo espaço para a reflexão sobre quem está vivo ou quem está morto. Quando acabou o tempo do espectro, findando o período dos nove meses, este teria que partir, mas não foi sem levar consigo Ricardo Reis, como, se realmente, fizessem parte um do outro.
Ressalta-se também, que a obra é repleta de trechos e reflexões poéticas, em que muitas vezes o protagonista, médico e poeta, desvia a narrativa, fazendo-a prosseguir em seus pensamentos, aos quais dedica uma participação significativa, até interrompê-los e retomar a narrativa, sendo que, em muitas destas reflexões, a personagem Ricardo Reis idealizava diversas situações, como em seus pensamentos e ilusões a respeito de Marcenda, por quem chegou a fazer uma viagem a Fátima, na esperança de encontrar a jovem, viagem esta, frustrada, em que não obteve sucesso, ao contrário, se viu diante de uma situação totalmente diferente ao bem estar ao qual era acostumado.
O ano da morte de Ricardo Reis é uma obra fictícia no qual o protagonista é inspirado em uma personagem também fictícia, fruto da mente de Fernando Pessoa.
Dentre os heterônimos, Pessoa não definira o ano da morte do heterônimo que ganhou vida no livro de Saramago, este então, em sua criatividade genial, deu continuidade a saga de Ricardo Reis, colocando-o cara a cara com o seu criador, Fernando Pessoa.
O livro O ano da morte de Ricardo Reis, para os apaixonados por Fernando Pessoa, é uma leitura obrigatória, num misto de ficção e historicidade, é uma obra repleta de reflexões filosóficas e pensamentos, poeticamente escritos por Saramago.