spoiler visualizarVitorcfab 23/07/2022
Niketche
Antes de mais nada, preciso dizer que eu jamais terei capacidade para avaliar esse livro, não apenas por não ser estudante de literatura, mas também por reconhecer o tremendo impacto histórico e social dessa autora, que foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique. E esse ainda é um romance que fala sobre a situação e vivência das mulheres no país.
Vocês conseguem imaginar o valor desse livro? Particularmente, isso é algo que eu nem consigo mensurar.
Logo de início a autora deixou claro o tom depressivo e reflexivo que seu texto adotaria. Imediatamente, somos confrontados não apenas com a realidade de nossa protagonista, mas também de outras mulheres em situações parecidas, que foram abandonadas (ou parcialmente abandonadas) por seus maridos, homens infiéis que buscam apenas por prazer em garotas (muito) mais jovens do que elas.
Ainda no primeiro capítulo, temos uma cena forte, onde ela confronta o pensamento de ter sido abandonada pelo marido. Ela, uma mulher bela e inteligente, que dedicou a vida à esse marido. Ela confronta sua imagem no espelho, começa a encontrar "defeitos" em si mesma, numa tentativa de encontrar os motivos para seu abandono.
A conversa com seu reflexo no espelho é triste, mas descrita de forma bela e metafórica, capaz de me emocionar muito mais do que o esperado.
Podemos ver Rami dominada pelo desespero, medo e pelo ódio, sentimentos que a motivam a buscar as demais esposas de seu marido. Encarar essa realidade causa diversos sentimentos conflitantes nela, mas não demora para perceber que essas mulheres são vítimas iguais a ela.
Tony é um homem desprezível, que representa de forma direta os aspectos mais detestáveis em um homem, ou, mais especificamente, de uma sociedade machista em geral. Ele acredita no espírito livre do homen, por isso não se considera um traidor, pois está apenas seguindo sua natureza. Porém, diz que se uma mulher fizesse o mesmo, aí sim seria traição. A objetificação feminina se torna clara em suas atitudes e diálogos, é simplesmente desprezível.
Poderemos conhecer um pouco sobre a cultura moçambicana, bem como as diferenças entre a cultura dos povos do norte e do sul, e como cada um desses povos vêem as mulheres de formas diferentes, proporcionando vivências muito distintas.
O livro nos convida a refletir sobre os perigos de uma sociedade extremamente machista, que limita as mulheres a serem apenas esposas, estarem sempre abaixo dos homens, e como tal experiência é destrutiva de diversas formas. Essas são as reflexões constantes de nossa protagonista, reflexões que servem como motivação em vários momentos.
Gosto de suas conversas com tia Maria, uma mulher mais velha e muito familiarizada com a poligamia, que atualmente vive com dois homens, de forma aberta e explícita, ainda que sofra repúdio social por conta disso. Por meio desses diálogos, um pouco das ideias levemente erradas acerca da poligamia começam a ficar mais claras para Rami.
Poderemos conhecer as outras mulheres do marido de Rami, e entender como o relacionamento de Tony com cada uma delas era diferente, sendo até mesmo violento e abusivo em alguns casos.
O livro pode ter passagens consideradas homofóbicas, o que é compreensível pelo contexto social e político do país (sim, homossexualidade era crime em Moçambique até 2015). É incômodo, mas não consigo desqualificar o livro por causa disso.
Por muitas vezes, ela reflete principalmente sobre a poligamia socialmente aceita, que se resume a um mero capricho masculino, que lhe dá liberdade para se relacionar com quantas mulheres quiser, reduzindo novamente a mulher a objetos sexuais.
É incômodo ver essa dura realidade que as mulheres vivenciam constantemente, e como essa história está constantemente se repetindo, em um ciclo vicioso que parece não ter fim, trazendo ainda menos esperança.
"Mães, mulheres. Invisíveis, mas presentes. Sopro de silêncio que dá a luz ao mundo. Estrelas brilhando no céu, ofuscadas por nuvens malditas. Almas sofrendo na sombra do céu. O baú lacrado, escondido neste velho coração, hoje abriu-se um pouco, para reve lar o canto das gerações. Mulheres de ontem, de hoje e de amanhã, cantando a mesma sinfonia, sem esperança de mudanças."
Durante sua busca, Rami se depara com a realidade de outras mulheres, realidades ainda piores que a dela, e nos convida para mais uma aula de empatia.
"Estas mulheres simbolizam a dor do mundo. Bebo as suas dores, os seus sentimentos. Elas tinham no peito uma flor e se deram por amor. Abriram o corpo, esse mágico labirinto, e deixaram germinar outras flores sem rega, nem pão, nem esperança. Sofro por essas crianças. A situação destas concubinas é de longe pior que a minha. Sem proteção legal, nem familiar. As casas onde moram são propriedade do senhor, é ele quem paga as rendas no fim de cada mês. Pode expulsá-las quando entender, arremessá-las à pobreza total."
"Se ele morre, não terão direito a nada, porque não constituem família de coisa nenhuma, são apenas satélites da família prin cipal. É preciso inverter a ordem das coisas. Mas como? Reúno todos os sentimentos recolhidos em cada boca e faço a radio grafia do amor."
É desesperador e extremamente incômodo ver tantas mulheres acostumadas com a subserviência, a serem totalmente submissas de corpo e alma a seus maridos, sofrendo por conta disso, mas um sofrimento familiar e "comum".
Porém, nossa protagonista passa a ver seu sofrimento como uma forma de conseguir mais força, de alimentar sua raiva e até mesmo buscar uma leve vingança.
"Tudo o que eu fiz na vida foi agradar o meu Tony. O que ganhei eu? Solidão. [...] Nesta luta não ganhei, só perdi. Mas sou rija, forjada, tenho nervos de aço. Meu choro não é de fraqueza, é de raiva. Vou arregaçar as mangas e entrar numa nova briga. Vou atacar o Tony com a sua própria arma: mulheres. [...] Estas quatro mulheres à minha frente são as minhas armas e as outras que ainda hão de vir serão as minhas balas. Veremos quem sairá vencedor!"
É possível que, em alguns momentos, a protagonista pareça adotar uma posição totalmente contrária a qualquer tipo de poligamia, o que é justificável pela situação que está vivendo.
Mas preciso pontuar que essa definitivamente NÃO é a MINHA posição a respeito desse assunto, pois acredito plenamente em poli-amor, quando é consensual e desfrutado por todas as partes envolvidas.
Por vezes, Rami reflete sobre a possibilidade de pedir um divórcio, imagina uma realidade livre desse homem, mas, obviamente, não é algo simples, principalmente nessa sociedade onde o papel da mulher é resumido a ser esposa.
"Precisa-se de um homem para dar dinheiro. Para existir. Para ter estatuto. Para dar um horizonte na vida a milhões de mulheres que andam soltas pelo mundo. Para muitas de nós, o casamento é emprego, mas sem salário. Segurança. No tempo da operação produção, eram presas todas as mulheres que não tinham maridos e deportadas para os campos de reeducação, acusadas de serem prostitutas, marginais, criminosas. Por todo o lado há assédio sexual para os cavalheiros mais abastados tanto em músculos como em dinheiro."
Muitas outras coisas acontecem nessa história, que tem alguns desdobramentos interessantes e até inesperados, mas não posso comentar mais nada sem dar grandes spoilers.
Mas, no geral, é um livro difícil, sentimental, incômodo, forte e extremamente reflexivo, que nos apresenta uma cultura muito diferente da que temos no Brasil, bem como um contexto social muito distinto, e tece inúmeros comentários relevantes acerca da vivência feminina em tais situações, evidenciando a importância da união entre as mulheres e das lutas feministas. Um livro extremamente necessário.
Para finalizar, vou deixar mais alguns trechos interessantes que anotei durante a leitura.
"Quem inventou a moda feminina foi um homem, só pode ser. Inventou sapatos de salto alto para que a mulher não corra, e não lhe fuja do controle. Se pensasse nela, teria inven tado uma botas e mocassinos, sapatos do tamanho do chão, para ela poder caminhar, correr e caçar o sustento, como as amazonas. Inventou as saias apertadas para obrigar a mulher a manter as pernas fechadas, coladas. Se pensasse nela, teria inventado umas saias bem rodadas, para andar à vontade e refrescar os interiores, nos dias de verão. No lugar disso, inventou as roupas coladas, atrevidas, para poder deliciar a vista na paisagem ondulada de qualquer uma e masturbar-se com o simples olhar."
"Mulher é tronco de salvação para as vítimas de todos os naufrágios. Mulher é ciclo da natureza. Perfeito. Completo. No verão ela é sombra frondosa para repousar o cansaço dos grandes guerreiros. No inverno ela emana, do seu corpo, calor imenso, que cobre a terra inteira. Na primavera, ela é a flor de todas as cores que alegra a natureza. No outono, é a semente que se esconde, anunciando primaveras vindouras. O coração do universo inteiro palpita no ventre de uma mulher. Toda a mulher é terra, que se pisa, que se escava, que se semeia. Que se fere com pisadas, com pancadas, com socos e pontapés. Que se fertiliza. Que se infertiliza. A mulher é a primeira morada. A última morada. Num casal, o homem morre sempre primeiro, para que a mulher possa colocar a última pá de terra e a última flor no túmulo do seu amor. A mulher é forte como as rochas do monte Vumba. Suave como as ervas dos prados. Generosa e fértil como as terras negras do vale do Zambeze. Benevolente como um campo de milho. Venenosa como as lavas do Etna. Altiva como o Quili manjaro. Incómoda e traiçoeira como as brumas do Saara. Ela é a profetisa da eternidade, que revela o passado, o presente e o futuro, quando profundamente escavada pelas mãos mágicas de um bom arqueólogo."
"A minha felicidade foi ter gerado só homens, diz ela, nenhum deles conhecerá a dor da violação sexual."
"- A minha mãe foi sempre espancada pelo meu pai, mas nunca abandonou o lar. As mulheres antigas são melhores que as de hoje, que se espantam com um simples açoite.
- Tens razão, Tony, as mulheres de hoje já não têm juízo. Por que não te casas com a minha avó?"
--- Escrita e Fluidez ---
A escrita da autora possui várias características marcantes. É, em geral, construída por frases breves e curtas, às vezes resumidas à uma única palavra. Tais frases são separadas por pontos finais bruscos, e por vezes adotam um tom depressivo, cheio de questionamentos acerca dos diversos fatores que estão errados na vida da protagonista.
Ainda que com frases curtas, a autora sempre me pareceu construir frases belas, cheias de sentimentos e metáforas, criando duas formas de beleza em seu texto, uma pelo significado de suas mensagens, e outra pela beleza sonora que tais frases compõe, quando lidas em voz alta.
Uma escrita que esbanja poesia e significado, com tanta qualidade que jamais terei capacidade intelectual para avaliar e explicar corretamente.