spoiler visualizardutraigor 05/02/2020
Utopia para hoje, utopia para amanhã.
A descrição uma sociedade utópica revela as crenças e posicionamentos políticos mais viscerais de quem a faz. Para pessoas de posicionamento equitativo, numa sociedade assim, talvez o principal seja a extinção das relações de poder, que se fundamenta na conscientização dos analfabetos políticos tornando-os sujeitos de ação e voz como é preconizado pela psicologia social e pela filosofia de Paulo Freire.
De fato, em Utopia, a ilha descrita por Rafael Hitlodeu, personagem principal do livro escrito por Tomas More em 1516, não existem relações de poder. A Ilha é descrita como o melhor modelo de republica, e em certos aspectos a única organização com real sentido de ser chamada assim.
No modelo de organização de Utopia o valor é atribuído as coisas de acordo com a utilidade ao coletivo, mas é necessário salientar que valor nenhum é expressado em moeda ou qualquer tipo de monetização, o ouro por exemplo tem muito menos valor do que o ferro, por isso é utilizado em privadas, correntes de escravos é um tipo de sinalizador de desprestígio. Tal desprestígio é representado em uma passagem do livro, que talvez seja a única cômica, na qual reis e consortes de um país próximo, em uma visita a Utopia, são confundidos com escravos, devido a quantidade de ouro e adornos que vestiam, sendo totalmente ignorados pelos Utopianos, que faziam reverencias a seus servos.
Além do ouro, todo o tipo de item supérfluo a sobrevivência é abolido juntos com as profissões que os produzem, dessa forma, restam mais trabalhadores para as profissões de realmente beneficiam a todos. O trabalho só é dispensado aos sacerdotes e aos estudiosos, devendo ser exercido pelo príncipe e pelos líderes escolhidos pelo povo. A agricultura é a principal profissão em Utopia e nenhum cidadão trabalha mais do que seis horas, o que é contrastante com a realidade da época, visto que nos séculos XV e XVI a jornada de trabalho era entre doze e treze horas por dia.
No Brasil a maioria das profissões sege o regime de oito horas diárias de trabalho, quem trabalha menos que isso é porque se expõe ou gera algum tipo de risco, ou ainda, porque a jornada extensa acarreta em improdutividade. A despeito dessa longa jornada de trabalho ainda existem, nessa pátria, pessoas em condição de extrema pobreza, o que não se encontra em Utopia, onde nenhum cidadão possui nada, pois não existe propriedade privada, mas todos são ricos, porque toda a riqueza do Estado é também de todo cidadão.
Nenhum Utopiano passa fome ou sofre com a miséria, pois toda a produção é programada para além das necessidades de cada cidade, assim caso seja necessário uma cidade vizinha pode socorrer outra que não produziu o suficiente, ou que por algum motivo perdeu sua produção. Por essa ajuda não se pede nada em troca, tudo que é doado não gera dívida, assim todas as cidades são abastecidas de acordo com suas necessidades.
Outras descrições sobre a ilha são feitas por Rafael Hitlodeu e registradas no segundo livro de Utopia, a obra é dividia em dois livros. No primeiro Rafael Hitlodeu faz um discurso sobre a melhor forma de constituição de uma república, como o próprio título indica, que se inicia com uma crítica ao modelo de poder judiciário exercício na Inglaterra naquela época. Mesmo que separados por cinco séculos, as críticas feitas por Hitlodeu ao modelo do poder judiciário daquela época, aplicam-se seguramente ao modelo que possuímos hoje.
Para as pessoas que visualizaram o terror em tela que é exibido pelo documentário de 2007, “Juízo”, pelo filme de 2003, “Carandiru”, ou qualquer documentário sobre o sistema prisional no Brasil, essa comparação fica mais clara. Hitlodeu reprova as condenações de morte que eram decretadas massivamente aos casos de roubo na Inglaterra e, em 1516, escancara o que hoje ainda é ignorado pelo nosso sistema: o problema é social. Nó século XVI retiravam a vida, hoje retiramos a liberdade mesmo conhecendo a máxima de Hitlodeu: “contra ladrões são decretadas penas duras e terríveis quando seria melhor proporcionar-lhes meios de subsistência, a fim de que ninguém se visse na cruel necessidade de roubar primeiro e a seguir ser enforcado”.
Ler os argumentos de Rafael Hitlodeu provavelmente irá arrepiar aquele que conhece os argumentos de outra filosofa importante para a conscientização dos analfabetos políticos: Hannah Arrendt. Estaríamos então condenando à ruína tudo o que encostamos, pois não sabemos reconhecer no passado ensinamentos para um presente melhor, derrotados pela ganancia de homens ricos, exatamente como na época de Hitlodeu.
A sabedoria de Rafael é aclamada e insistentemente esse personagem é aconselhado a se por a serviço de um reino, para que sua sabedoria seja prestada a humanidade, contudo ele próprio se nega a tal servidão, recorrendo a relação de Platão e Dionísio como justificativa, sendo essa a última discussão do primeiro livro que termina com a promessa de descrição da república de Utopia após o jantar.
O segundo livro de Utopia é repartido em vários capítulos descritivos de Utopia, onde Rafael se põe a falar sobre a punição dos roubos, que é feita pelo trabalho escravo; sobre o casamente, que é indissolúvel exceto nos casos de traição ou de conduta intolerável; sobre as guerras, que nunca são feitas para aumento do poder, mas para defesa própria e de nações amigas e libertação de povos sob o domínio de um tirano, não se glorificam vitórias sangrentas e sobretudo tentam poupar seus concidadãos comprando mercenários; sobre a religião que é plural e respeitada em todas as suas manifestações; sobre o estudo que é acessível a todos; sobre as leis que consideram necessárias, mas criticam as nações que criam mais leis do que as pessoas possam conhecer e de fato se fazer pratica-las; sobre as festividades para agradecimento da colheita e também sobre a hierarquia familiar, que chama atenção pela dissonância aos modelos atuais, demonstrando uma submissão feminina a figura masculina.
Aos finais de cada mês e de cada ano os Utopianos celebram uma festa no templo para agradecer o mês ou o ano feliz e pedir prosperidade para o próximo, mas é no preparamento dessa festa que se revela a submissão feminina. Segundo as crenças dos Utopianos, nenhuma pessoa pode adentrar ao tempo com a alma inquieta e perturbada, por isso antes de partirem para essa celebração, em casa as mulheres se ajoelham aos pés de seus maridos e os filhos aos pés dos pais para pedir perdão por seus erros, garantindo assim a harmonia familiar. Uma mulher ajoelhar e pedir perdão ao seu marido poderia ser normal e adequado em 1516, isso também poderia acalmar a inquietação da alma do marido, mas nem sempre acalmaria a da esposa.
Em 2020 é na, maior parte de mundo, inconcebível a submissão feminina, adotamos o poder parental como a melhor forma de distribuição do poder na hierarquia familiar e o patriarcado tem sido confrontado desde Elizabeth I. Outros dois pontos contribuem para Utopia não ser mais o modelo ideal de constituição de uma república, o primeiro seria o não julgamento dos sacerdotes, pois os Utopianos consideram que não poderia ser julgado por homens comuns atos de homens escolhidos por Deus; o segundo seria o casamento entre pessoas do mesmo sexo, que não é nem mencionado no livro, pois na época tampouco era considerado.
Thomas More, ensina valiosas lições sobre a propriedade privada, o dinheiro, o poder e como nossa relação com eles aprisiona nossa existência, entretanto ainda nos deixa a dúvida de que tipo de liberdade devemos buscar e qual espécie será realmente livre. As mulheres, as derivações de identidade de gênero e os animais, considerando a ideologia vegana, não provariam da liberdade genuína em Utopia, o que nos prova que liberdade é muito mais do que permitir que uma pessoa faça suas próprias escolhas, mais do que dar condições para que as pessoas tenham as mesmas opções de escolhas. Liberdade é tornar cada um sujeito de sua própria história, conscientizando-o das relações de poder e da realidade política na qual está inserido. Liberdade é isso hoje, no próximo século outra coisa, exatamente como uma utopia.